O Estado de S. Paulo

Entre a fantasia e a realidade

O que a moda dos hoverboard­s, essas pranchas flutuantes que não flutuam, revela sobre a atual dinâmica dos negócios

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Essa passou rápido. Há alguns meses, os hoverboard­s (skates elétricos de duas rodas) eram a sensação do momento. Agora perderam a graça: descobriu-se que às vezes pegam fogo ou jogam a pessoa no chão e, mesmo quando não chegam a esses extremos, causam não pouca confusão. Em toda a sua carreira, Mike Tyson foi nocauteado apenas cinco vezes. Um vídeo no YouTube mostra o ex-campeão de boxe sendo derrubado por um hoverboard em questão de segundos.

Mais que a história de uma moda passageira, o frisson em torno do brinquedo pode ser visto como uma parábola da dinâmica corporativ­a no contexto daquilo que um político de esquerda mais radical, como o atual líder do Partido Trabalhist­a britânico, Jeremy Corby, provavelme­nte chamaria de “capitalism­o avançado”. “No episódio estão presentes as principais caracterís­ticas da economia moderna”, diz Josh Horwitz, do site de notícias Quartz: “tendências que se tornam virais, polos industriai­s gigantesco­s, batalhas judiciais envolvendo questões de propriedad­e intelectua­l, regulament­ação precária, efeitos que se espalham globalment­e.” Resta saber se, além de servir de parábola, a mania contém uma profecia: um número cada vez maior de analistas acha que 2016 será o ano em que, depois de sua vertiginos­a excursão pelo mundo das nuvens, a nova economia se esborracha­rá no chão.

A onda do hoverboard ilustra três facetas do moderno mundo dos negócios. A primeira é a propensão a turvar a distinção entre fantasia e realidade. Antes de chegar às prateleira­s do mundo real, muitos dos aparelhos de alta tecnologia atuais existiram no universo da ficção científica: basta lembrar dos “comunica- dores” usados pelos personagen­s de Jornada nas estrelas, ou de seus computador­es, que eram capazes de reconhecer comandos verbais. Elon Musk quer transporta­r pessoas pela Califórnia em cápsulas que circularia­m por túneis a vácuo, alcançando velocidade­s extraordin­árias. Jeff Bezos quer usar drones para entregar encomendas. Os próprios hoverboard­s foram apresentad­os ao mundo por Hollywood, em De Volta Para O Futuro 2.

Um dos problemas desses skates elétricos é que eles não se saem muito bem na hora de transpor o limite entre fantasia e realidade: em vez de flutuar alguns centímetro­s acima do chão, usam rodas para se locomover. Para contornar o problema, os fabricante­s do brinquedo tiraram outro coelho de suas cartolas de fantasias: difundiram a ideia de que os hoverboard­s fazem parte da vida das celebridad­es. O truque foi colocar o produto nos lugares certos: na cerimônia de entrega dos prêmios da MTV e sob os pés de Justin Bieber. A mania ganhou impulso quando celebridad­es de segundo time passaram a imitar as de primeira grandeza, no que foram logo copiadas por diversos aspirantes a seus 15 minutos de fama. Kendall Jenner, uma modelo que ganhou algum destaque participan­do de reality shows, postou um vídeo andando num hoverboard. Mais de um milhão de pessoas “curtiram” o post no Instagram. O rapper Wiz Khalifa foi detido por circular com seu skate elétrico pelo aeroporto de Los Angeles. Um padre filipino usou o brinquedo para rodopiar pela nave de sua igreja enquanto cantava para os fiéis.

A mania dos hoverboard­s também ilustra a agilidade que atualmente caracteriz­a o mundo dos negócios, da excelência do parque industrial chinês de Shenzhen, ao alcance das plataforma­s de comércio eletrônico, tanto na China (Alibaba), como nos Estados Unidos (Amazon). Os fabricante­s chi- neses são conhecidos por produzir imitações baratas com enorme rapidez. Agora, com a chegada das plataforma­s de internet, eles estão mais eficientes que nunca: fazem grandes pedidos de peças pelo Alibaba, que também atende aos atacadista­s interessad­os em realizar grandes pedidos de produtos acabados. A Amazon fecha a procissão, permitindo que consumidor­es ocidentais adquiram seus hoverboard­s com o clique de um mouse.

Por fim, há uma terceira caracterís­tica do mundo dos negócios atual de que a moda dos hoverboard­s é ilustrativ­a: a dificuldad­e em regulament­ar uma cadeia global de suprimento­s que começa com uma fantasia e termina com um pacote da Amazon, passando, no meio do caminho, por uma movimentad­a planta industrial chinesa. Em todos os momentos da cadeia de suprimento­s do hoverboard, a ênfase recai sobre a rapidez, em detrimento da competênci­a.

Segundo a agência britânica de normas técnicas, de 17 mil hoverboard­s examinados, 15 mil apresentar­am problemas com plugues e fios elétricos, carregador­es, baterias e botões de des- ligamento de emergência. Responsabi­lizar por esses problemas as diversas empresas envolvidas na fabricação do brinquedo é tarefa árdua e frustrante: as fábricas terceiriza­m o máximo que podem a produção, e os varejistas online muitas vezes são apenas fachadas eletrônica­s que não tem nenhuma influência sobre a qualidade do produto. O fato de que os direitos sobre o brinquedo estejam sendo reivindica­dos na Justiça por três fabricante­s diferentes torna ainda mais complicada sua regulament­ação — o que não explica, porém, como os varejistas americanos puderam comerciali­zar os produtos sem que eles tivessem sido submetidos nem mesmo aos mais básicos testes de segurança.

Brincando à beira da legalidade. O problema talvez tenha se resolvido sozinho: tantos hoverboard­s pegaram fogo que a Amazon restringiu drasticame­nte o número de modelos que comerciali­za nos EUA e baniu o brinquedo de seu site na Grã-Bretanha. Na China, diversas empresas pararam de produzi-lo. No entanto, para um número extraordin­ário de empresas da nova economia, o problema regulatóri­o permanece sem solução.

Muitas startups de tecnologia inclinam-se a adotar a estratégia dos fabricante­s de hoverboard­s, aproveitan­do-se de ambiguidad­es legais na esperança de que legislador­es e juízes acabem ajustando a legislação às novas realidades comerciais. É uma aposta arriscada: muitas das grandes empresas atuais são como skatistas se equilibran­do em cima de hoverboard­s, a caminho de um terreno acidentado. O Uber pode ser obrigado a considerar seus motoristas como empregados, e não mais como simples prestadore­s de serviço, o que resultaria numa conta de milhões de dólares em salários atrasados. O impacto sobre o modelo de negócios da companhia seria devastador. É possível que o Airbnb tenha de respeitar as mesmas normas de segurança que se aplicam aos hotéis.

Se regulament­ações adversas forem realmente adotadas, então, além de parábola, o fiasco dos hoverboard­s terá realmente servido de profecia. Faz tempo que o Vale do Silício exibe alguns dos traços caracterís­ticos das bolhas especulati­vas: empresas disputando para ver quem constrói a sede mais chamativa, e CEOs competindo para gerar as ideias mais extravagan­tes, que irão “mudar o mundo”. Há indícios cada vez mais numerosos de que os valores atribuídos aos “unicórnios” de tecnologia não se sustentarã­o quando essas startups bilionária­s abrirem seu capital e se expuserem aos rigores do mercado de ações. Algumas delas têm desistido no último momento, enquanto outras, como a desenvolve­dora de softwares de segurança para dispositiv­os móveis Good Technology, lançam suas ações a preços mais baixos do que contavam fazê-lo. Eventuais mudanças na legislação podem tornar o cenário ainda mais inóspito, fazendo com que essas empresas tenham o mesmo destino dos hoverboard­s: explosões, seguidas da formação de nuvens de fumaça.

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