O Estado de S. Paulo

‘As Benevolent­es’ denuncia a gênese da crueldade humana

Com direção de Ulysses Cruz, monólogo com Thiago Fragoso mostra personagem totalmente desprovido de paixão

-

O alemão Max Aue mora em Paris, onde dirige uma fábrica de rendas. A imagem de cidadão pacato é rapidament­e apagada quando Aue decide escrever sobre seu passado, narrativa na qual surge um torturador, ex-oficial da SS, a tropa de elite nazista. Essa é a trama de As Benevolent­es, potente romance escrito em francês pelo americano Jonathan Littell, obra comparada ao clássico Guerra e Paz, de Tolstoi, e que garantiu o Goncourt de 2006 a seu autor, uma das principais premiações francesas.

“Fiquei fascinado com a obra quando a li, mas seu potencial teatral me foi mostrado anos depois, por um amigo”, conta o diretor Ulysses Cruz, responsáve­l pela transforma­ção do romance em monólogo, que estreia nesta quinta, 21, no Teatro Arthur Rubinstein. “A narrativa fria e cruel me seduziu a ponto de incluir um subtítulo, Uma Anatomia do Mal.”

De fato, no caudaloso romance (são 912 páginas e, no Brasil, foi publicado pela Alfaguara), Aue desfia uma crueldade inigualáve­l – intelectua­l, cita Banquete, de Platão, com o mesmo informalis­mo com que pra-

Otica o ato de somar ao calcular o número de vítimas que morreram sob suas ordens. O mal em que ele confessa ter mergulhado não lhe provoca prazer. Aue descreve as atrocidade­s como se estivesse distante.

Tal figura complexa (em um dado momento, o carrasco confessa seu homossexua­lismo, que lhe deixa passivo diante da atração por outros homens) atraiu o ator Thiago Fragoso que, apesar de conhecido como galã de telenovela, cultiva uma desafiante carreira teatral, com montagens de autores como Sam Shepard e Tom Stoppard no currículo. “Aue nos permite pensar na banalidade do mal, algo que continua atual”, afirma ele que, para compor o personagem, mergulhou uma maratona de ensaios – primeiro no Rio, no ano passado, depois completada em São Paulo.

Tamanho esforço é físico e mental. Sozinho em cena, Fragoso monta aos poucos o cenário, formado por uma série de pilares de tamanho irregular, criado por Veronica Valle. “Trata-se, na verdade, de uma inspiração nas colunas que compõem o Museu do Holocausto, em Berlim”, conta Cruz que, para compor a trilha sonora, utilizou a mesma estrutura com que Littell constrói seu romance, ou seja, com os compassos e andamentos de uma ópera. “Assim, a encenação também se divide em Toccata, Allemandes I e II, Courante, Sarabande, Menuet (en rondeaux), Air e Gigue”, afirma o encenador. “Aliás, no capítulo de abertura do livro, está o embrião da peça e percebi isso quando alertado por Marco Antonio Araujo, que assina a dramaturgi­a.”

Ulysses Cruz criou uma encenação sóbria, sem dispensar barbaridad­es do original (Aue reflete, por exemplo, sobre corpos de mulheres torturadas), mas traçando uma linha atemporal na narrativa. “O que perturba no texto é a proximidad­e com a nossa época”, afirma. “As atrocidade­s, a covardia, a arrogância daqueles tempos tenebrosos continuam presentes no nosso cotidiano. A maneira impiedosa com que alguns se comportam, em nome de uma suposta integridad­e, política, religiosa ou social, demonstra de forma inequívoca que os ‘escolhidos’ tratam o planeta como se fosse deles.”

E é significat­ivo que a peça seja encenada em um teatro do clube A Hebraica. “Não houve nenhuma interferên­cia da parte da direção, que não desconhece o teor do texto”, diz Cruz.

Mais informaçõe­s sobre a peça ‘Memórias de Adriano’ na pág. C3

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil