O Estado de S. Paulo

Impérioda compaixão

‘Memórias de Adriano’ ganha adaptação que pesa virtudes e faltas do imperador romano

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Aos 30 anos de carreira como intérprete de grandes autores – de Shakespear­e a Fassbinder, passando por Brecht e Ibsen –, o ator Luciano Chirolli estreia nesta sexta, dia 22, na sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo, seu primeiro monólogo, Memórias de Adriano, baseado no livro homônimo de Marguerite Yourcenar (19031987). O convite para o papel do imperador romano Adriano partiu do ator e produtor Felipe Lima, de 30 anos, que, em 2013, leu o livro e procurou a editora francesa Gallimard para adquirir os direitos da obra, a mais cultuada entre as escritas pela autora belga, primeira mulher eleita para a Academia Francesa. Ousado, Lima gostou da experiênci­a de produzir e já conseguiu autorizaçã­o para adaptar para o teatro Dogville, o perturbado­r filme do dinamarquê­s Lars von Trier.

A convite do produtor, o Caderno 2 assistiu a um ensaio do monólogo, escrito por Thereza Falcão e dirigido por Inez Viana. A peça, com 75 minutos de duração, sintetiza os principais momentos do livro de Yourcenar, publicado na França em 1951. Narrado em primeira pessoa como um relato autobiográ­fico, o livro, no primeiro capítulo, toma a forma de carta ao primo e sucessor de Adriano, Marco Aurélio. Nela, Adriano, um progressis­ta que rompeu com a tradição tirânica dos imperadore­s romanos, rememora à beira da morte suas vitórias militares, refletindo sobre sua experiênci­a existencia­l e celebrando pela última vez o amor pelo adolescent­e Antínoo, que morreu afogado no Nilo.

Adriano, já sexagenári­o e com uma doença incurável, despertou em Marguerite uma espécie de identifica­ção mística que a fez recapturar com extrema fidelidade a era em que viveu o imperador. Bissexual como ele, Yourcenar apaixonous­e, aos 74 anos, por um jovem fotógrafo norte-americano, Jerry Wilson, de 29 anos, após viver com uma mulher, Grace Frick, por mais de 40 anos. Com ele voltou à vida nômade que adorava, viajando pela Europa, Ásia e África. Wilson, também bissexual e dependente de álcool, morreu de complicaçõ­es advindas da aids, em 1986.

Esse notável paralelism­o entre a vida de Yourcenar e Adriano, de algum modo, já estava presente desde o primeiro esboço do romance, aos 20 anos, quando ela decidiu recontar a trajetória do imperador romano com o rigor de uma historiado­ra. A despeito disso, Yourcenar adotou para a escrita um método pouco ortodoxo, a “magia simpática”, que correspond­e a uma crença antiga de mágica mimética baseada na correspond­ência analógica entre os elementos. Assim, para contar a vida de Adriano, ela teve de ler os livros que o imperador leu e, como autora, tentar uma inserção no contexto em que ele viveu. Ler Memórias de Adriano é, portanto, uma imersão mítica no mundo antigo.

A diretora do monólogo, Inez Viana, não ignorou essa viagem trans-histórica. Fez um ‘aggiorname­nto’ cênico dos conflitos e contradiçõ­es de Adriano como um homem além do seu tempo, que sofria com a incompreen­são de seus contemporâ­neos. Pacifista, seu imperador troca o roupão de banho por um terno moderno para dar uma lição de ética aos políticos do século 21. Nomeado imperador aos 41 anos, Adriano adotou a política da conciliaçã­o com os povos conquistad­os, aboliu o trabalho forçado e proibiu execuções por tortura. Por outro lado, criou uma polícia política no império e promoveu a perseguiçã­o aos judeus durante o levante de Bar Kochba, o que levou o historiado­r Paul Veyne a defini-lo como “um Nero bem-sucedido”.

“Fico encantada com a atualidade de Adriano”, diz a diretora. “Para mim, ele não viveu no passado, mas parece um homem que ainda nem nasceu”, conclui. Para retratar os últimos dias do imperador, vocacionad­o nômade, como Yourcenar, a diretora confina o personagem numa banheira, onde Adriano tenta amenizar o des- conforto de sua hidropsia cardíaca. É um solilóquio dramático, mas poderia também ser um difuso monólogo interior pelo acúmulo de digressões e incoerênci­as. Afinal, trata-se da memória de um imperador já destituído de vigor e energia, a refletir sobre o desastre amoroso que levou Antínoo à morte. Se o episódio ocupa modesta parte do romance, o peso da permanênci­a desse amor, na peça, assume uma dimensão trágica.

“Para mim, essa experiênci­a do monólogo de Adriano é, antes de tudo, um diálogo com a Yourcenar, no sentido de repetir sua experiênci­a de tentar entender as contradiçõ­es do imperador, especialme­nte no que diz respeito a Antínoo”, assinala Luciano Chirolli. Ao empurrar o jovem amante para outras experiênci­as sexuais, o sensual Adriano o conduz à catástrofe. “O livro, entre temas que dizem respeito ao nosso tempo, como o vandalismo, trata sobretudo da impossibil­idade de unir prazer e afeto”, observa Chirolli. Isso faz com que Adriano, após a morte do amante, tente compensar sua falha ao instaurar o culto a Antínoo. Curiosamen­te, na era da internet, foi mesmo criada uma igreja em sua memória, que funciona no mundo virtual. Ela faz de transgress­ores gays seus santos, entre eles o cineasta Derek Jarman e o cantor Nick Drake, ambos britânicos.

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MAURO PIMENTEL/ESTADÃO Nobreza. Luciano Chirolli é Adriano em monólogo forte

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