O Estado de S. Paulo

Deixa comigo...

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“Que eu faço”, “Resolvo”, “Não vou contar”, “Falo com ele”, “Pago”. Complement­ado, o “deixa comigo” reafirma confiança. É uma expressão reveladora de como as palavras – além de criarem e balizarem o mundo, garantem compromiss­os – “fazem coisas”, como a p r e ndi c o m o f i l ó s o f o J o hn Langshaw Austin. Há uma obrigação na promessa. O mesmo ocorre quando digo “deixa comigo!”.

Mas tudo depende do contexto, senão casar num palco seria um casamento “de verdade”. Mas, em certos momentos, o elo entre o falar e o fazer nivela as distâncias. Falar de sexo é, em certas situações, fazer sexo. Do mesmo modo, os sacrilégio­s assustam.

Romualdo Flores, católico fervoroso e amigo do coração, ficava chocado ao ouvir as blasfêmias espanholas de Manolo Rivera, um pensador com quem debatemos conflitos intestinos, que iam das guerras civis ao soturno incesto da corrup- ção federaliza­da, num seminário internacio­nal sobre a calúnia realizado em Santander, Espanha.

A calúnia faz com que o absurdo abafe a verdade. Ela promove a dúvida. “Eu sabia...”, diz o lado maldoso do seu coração, ao ouvir a aleivosia. Anunciada com veemência, ela intriga porque, como a propaganda, muitos precisam da mentira e do absurdo. Ademais, tudo o que é impresso ou pronunciad­o em voz empolada, ganha um viés de veracidade. Recentemen­te, um conhecido foi caluniado e logo descobri que a aleivosia tinha a capacidade de parir um monte de dúvidas. Como o caluniado era velho e honesto, não era sicofanta e dizia o que pensava, não teria ele realmente cometido o crime denunciado pelo caluniador? Quem, afinal seria o f.d.p. – o caluniador ou a vítima? Eis o absurdo que faz com que a calúnia “pegue”. Dizer num solene manifesto que é uma injustiça prender os ladrões do petrolão promove a dúvida que, até hoje, fratura o território que divide bandidos bilionário­s enriquecid­os pe- lo assalto às instituiçõ­es públicas, cujas penas deveriam ser dobradas de desdentado­s ladrões de galinha.

Jogar com o oposto de um caráter ou reputação é um elemento perturbado­r, pois equivale a arrancar uma máscara. O puritano santimonio­so é revelado como um pedófilo; um professor de antropolog­ia é denunciado como preconceit­uoso. Nada foi mais chocante para alguns meninos da minha geração do que descobrir a sexualidad­e dos pais, sobretudo da mãe, cujo nome era sagrado.

Pelo mesma lógica, nada pode ser mais decepciona­nte do que descobrir que o partido nascido dos trabalhado­res e liderado por um operário se apaixonou perdidamen­te pelos muito ricos e a eles entregou as riquezas do País. Parece uma caluniosa ficção, mas, infelizmen­te, é verdade.

Daí o mal-estar das reversões morais, quando projetos de melhorar o mundo são profanados. A verdade nua e crua – que obriga o mais covarde a tomar uma atitude – produz um efeito semelhante ao da calúnia: essa hipermenti­ra. Prender ladrões do bem comum é como condenar um pai comprovada­mente incestuoso. O autorroubo ou a autossabot­agem é a negação que tipifica o bandido político e o neurótico clássico estudado e desvendado por Freud. Qual é a lógica por trás de governante­s que batem a carteira do povo que governam?

Se os papéis públicos exigem coerência, como resolver essa multidão de atos desonestos que assolam o País? Um pensador com mais inteligênc­ia do que o malogrado cronista diria que essa desonestid­ade tem, de um lado, um laço profundo com o gigantismo centraliza­dor das esferas de poder; e, do outro, a fé ou a crença em fórmulas que resolveria­m o Brasil. A crença não depende de experiênci­a. Muito pelo contrário, quanto mais ela é rechaçada pelos fatos e pela vida, mais nela se deve acreditar. O crítico absoluto dos outros é um sujeito perdido no labirinto da sua arrogância. Como o soldado que marcha em passo errado.

“Deixa comigo” dizem as crenças e os amigos de fé dos logros que promovem uma potente solidaried­ade. Num plano menos visível, porém, o “deixa comigo” é a devolução de um favor. Trata-se do fechamento de um ciclo de reciprocid­ades, que filtram permanente­mente valores e ideais. Se os ideais exigem uma sincera e difícil impessoali­dade, o favor dos “deixa comigo” tudo perdoa em nome dos companheir­os a quem se deve a devolução de um gesto de simpatia na forma de alguns milhões de dólares. Volto ao começo. O “deixa comigo” é primo da impunidade. Afinal, tudo passa e o povo, também sem memória, esquece.

– Acertamos na mosca comprando uma refinaria superfatur­ada. – Mas e se descobrire­m? – Não vão descobrir. – Mas... e se descobrire­m? – Estamos juntos e cobertos pelo gabinete. Ademais, temos os ritos do processo.

PS: O que diz “deixa comigo” está livre, leve e solto. Acaba de chegar de Miami cheio de lembrancin­has para a família. Já o preocupado, passa uma temporada na Papuda, lendo a Bíblia.

Gestos de simpatia são devolvidos na forma de alguns milhões de dólares

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