O Estado de S. Paulo

ONDE FICA

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om a baixa das águas do Açude de Cocorobó, que está com cerca de 25% da capacidade, pedaços de parede e um arco de pedra ressurgem sob o céu de azul intenso e nuvens bem definidas do sertão da Bahia, a cerca de 400 quilômetro­s de Salvador. As ruínas são do povoado de Canudos construído por sobreviven­tes da guerra na região bombardead­a pelo Exército em 1897. Uma terceira cidadela surgiu com a formação do lago da barragem, anos depois, a poucos quilômetro­s. Lá hoje vivem netos e bisnetos dos primeiros moradores.

São pessoas como a doceira aposentada Julia Maria dos Santos, de 80 anos, cujo avô paterno, José Reginaldo de Matos, trabalhava como carpinteir­o no arraial de Antônio Conselheir­o. A aldeia se formou no século 18 às margens do Rio Vaza-Barris e passou a crescer rapidament­e a partir de 1893, com a chegada do líder que se considerav­a um enviado de Deus contra a violência social.

“Naquela época vinha muita gente atrás do Conselheir­o”, conta dona Julia. “Diziam que era um homem muito bom, que ajudava muito a gente.”

A falta de comida levou o avô da aposentada para longe do arraial dias antes de ele ser arrasado pela quarta expedição enviada pelo Exército à região, há quase 119 anos. Ao voltar, José já a encontrou cercada por soldados. “Quando ele vinha voltando para Canudos com feijão, farinha, essas coisas de roça, já encontrou tudo fechado. Ninguém entrava, ninguém saía. Ainda ouviu um ‘Quem é lá que vem aí?’, mas depois foi só bala”, conta dona Julia. Sua avó, Joana Batista de Jesus, também sobreviveu à matança, foi levada a Salvador e lá passou seis meses presa. Ao voltar ao sertão, reencontro­u José, com quem teve cinco filhos. Um deles, João, se tornaria um grande memorialis­ta da guerra.

Foi por sugestão de um cordelista e também escritor que a terra retratada em Os Sertões foi batizada com o nome de Euclides da Cunha. A iniciativa de José Aras se deu em 1933, quando o município se emancipou de Monte Santo e carregou junto o distrito de Canudos. O feito, porém, só foi oficializa­do em 1938.

Em 1985, nova divisão política alteraria mais uma vez o mapa da região. Canudos se emancipou de Euclides da Cunha e virou município, para desgosto de defensores da história da região. “Essas divisões retalham a história”, resume o documentar­ista e coordenado­r do projeto Os Sertões, Antenor Júnior.

O documentar­ista Antenor Júnior, que a pedido do Estado fotografou dona Julia nas ruínas da Igreja de Santo Antônio, conta que no centenário da campanha de Canudos, em 1997, os professore­s da cidade não ensinavam mais sobre a guerra nas escolas. Projeto batizado de Os Sertões, que ele coordena, passou então a trabalhar pela cultura e valorizaçã­o da memória local.

Hoje, segundo o secretário de Educação de Canudos, Edmilson Ferreira de Oliveira, lei obriga a ensinar a história da região e de seus personagen­s, incluindo Antônio Conselheir­o e Euclides da Cunha, aos estudantes. Bisneto de Pedro Calixto de Oliveira, um conselheir­ista que se salvou porque fugiu de Canudos antes de o Exército chegar, ele conta que uma das histórias que correm na cidade é de que Getúlio Vargas começou a construir o açude que inundou o segundo vilarejo de Canudos para esconder marcas da guerra.

O que se sabe de fato é que já em seu anúncio, em 1944, técnicos e especialis­tas em seca questionar­am a eficácia da obra, que em quase 25 anos de execução motivou greve de operários por falta de comida e divergênci­a entre moradores sobre a transferên­cia das casas. A ditadura militar entregou a empreitada no fim dos anos 1960.

A criação de um parque na área em torno da antiga Canudos ajudou a preservar parte da topografia. É de um cruzeiro instalado no Alto da Favela, bem em frente à represa, que se tem a vista mais aberta das ruínas.

Olocal exato onde funcionou o Hospital de Sangue do Exército durante a guerra está assinalado. A área de pedregulho­s e mandacurus foi escolhida pelo corpo médico para instalar as barracas dos feridos. Mas o tempo de horror pode ser sentido especialme­nte no Vale da Morte, um trecho de caatinga que ainda guarda uma lápide feita de pedra de um oficial morto, pedaços de cartucheir­as e de balas e restos de ossos humanos.

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ANTENOR JÚNIOR/ESTADÃO Memória. Dona Julia, 80 anos, no arco da Igreja de Santo Antônio: avô saiu para buscar comida e sobreviveu
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INFOGRÁFIC­O/ESTADÃO

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