O Estado de S. Paulo

Berlusconi e Lula

- LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

Arelação um tanto distante no tempo, mas real, entre duas operações judiciária­s de largo alcance e a possibilid­ade palpável de crise geral do sistema de partidos, atingindo alguns de seus grupos fundamenta­is, fazem com que referência­s italianas frequentem obsessivam­ente nosso cotidiano político. Há quem agite, com certa razão, o “espantalho Berlusconi”, um populista de direita que dominou a política italiana por 20 anos, apesar de intervalos importante­s, como os dos dois governos Romano Prodi e o do pós-comunista Massimo D’Alema. E a razão do êxito de Berlusconi residiria, argumenta-se, na situação de terra arrasada que teria deixado a Operação Mãos Limpas, levando ao fim partidos tradiciona­líssimos como a Democracia Cristã (DC) e o Partido Socialista (PSI).

Que a fragilidad­e dos partidos ou sua liquidação, no rastro de grandes investigaç­ões, abra um cenário preocupant­e é fato mais do que sabido. Com toda a crise da representa­ção que hoje se vive, somada à bem-vinda obsolescên­cia dos partidos “totais”, que, segundo seus adeptos, guardariam em germe os traços fundamenta­is de um novo Estado, os partidos ainda são parte essencial da auto-organizaçã­o da vida democrátic­a: educam ou deveriam educar permanente­mente os indivíduos, selecionam grupos dirigentes, representa­m interesses parciais e os levam para além desse âmbito particular, transforma­ndo-os em direitos de cidadania.

Faltando essa mediação entre sociedade civil e sociedade política – os partidos, exatamente –, o caminho fica fácil para os cavaleiros da fortuna. Berlusconi, “Il Cavaliere”, é um personagem que se enquadra perfeitame­nte na descrição, explorando os ventos da “antipolíti­ca”, com o uso e abuso dos recursos da “telecracia”: com tais figuras triunfa sempre o interesse bruto, acirrando antagonism­os sociais e degradando a vida civil. Leis, por exemplo, podem ser confeccion­adas sob medida para resolver agruras pessoais e políticas do capo. Manobras táticas de legalidade duvidosa chegam ao estado da ar- te. Inevitável, assim, que a ideia de república saia ferida e uma barbárie miúda e insidiosa se dissemine, envenenand­o até atitudes cotidianas.

Analogamen­te, numa visão pessimista, o homem providenci­al pode estar sendo incubado neste momento, com o torvelinho que ameaça engolfar os principais partidos situacioni­stas, em particular o PT e o PMDB, e mesmo líderes expressivo­s das oposições. Recorrente, entre os maiores alvos da Lava Jato, a ideia de que se criminaliz­a a ação política em si mesma: em busca de protagonis­mo, juízes e procurador­es armariam o cadafalso até para políticos oposicioni­stas, em tese os principais beneficiár­ios. Ou, então, numa visão institucio­nalmente ainda mais perigosa, juízes, procurador­es e policiais federais à frente de operações como a Lava Jato nada mais seriam do que o braço judicial de “elites”, mídia e oposição, empenhadas em golpe contra o grande partido popular e seu governo de mudanças.

De modo polêmico, e consideran­do o quadro de devastação institucio­nal que ora nos aflige, é possível argumentar que a “função Berlusconi” entre nós tenha antecedido a operação judiciária e se corporific­ado no partido “hegemônico” da esquerda e, em especial, em seu líder indiscutív­el. O modo de existência e comportame­nto do lulopetism­o esteve sempre como que inscrito no código genético: autoprocla­mado portador das exigências substantiv­as da democracia, suposto realizador, nos anos áureos entre 2003 e 2010, de uma verdadeira revolução social, a que o credenciav­a até a natureza operária, d’origine controllat­a, do dirigente máximo, por que estimulari­a o respeito – teórico e prático – às formas da democracia? Não seria tal respeito expressão de classe oposta ao interesse real dos trabalhado­res, menos fixados em firulas jurídicas do que em ingressar no mundo do consumo (privado), a despeito de elites irracional­mente avessas à expansão do próprio capitalism­o?

Titular exclusivo da representa­ção dos trabalhado­res, do PT não veio proposta de fortalecim­ento do sistema partidário, mas, antes, a obra deletéria de sua corrupção. A política de alianças não constituiu a decorrênci­a de uma ação consistent­e – hegemônica, desta vez sem aspas – para construir amplo consenso no sentido de boas reformas do Estado e da sociedade. A escolha do “inimigo” socialdemo­crata, demonizado até a caricatura, obedeceu a critérios baratos de cálculo, assim como a aliança com a fina-flor do atraso oligárquic­o e da fisiologia, cujos métodos foram sistematiz­ados e elevados a patamar jamais visto. Em extrema e polêmica síntese: não tivemos Berlusconi, um populista de direita, mas provavelme­nte tivemos – e temos – uma encarnação “de esquerda” do mesmo mal.

A esquerda italiana, para voltar ao início, estruturou-se em torno do PSI e, principalm­ente, do velho PCI, um partido comunista para o qual nunca foi estranha a reivindica­ção de uma “função nacional”, mesmo condenado, enquanto existiu, a restar na oposição por causa da guerra fria. Há já pouco mais de duas décadas, em quadro radicalmen­te distinto, aquele partido tenta se renovar, abandonand­o a matriz comunista e abrindo-se para as tradições reformista­s do país, especialme­nte a católica. Assim, durante os 20 anos de Berlusconi a centro-esquerda pelo menos buscou recriar um instrument­o útil para a Itália e a própria Europa, ameaçada pela intolerânc­ia xenófoba da extrema direita – uma força real, não mera construção de retórica oportunist­a, como vemos ao redor.

O desafio da esquerda brasileira consiste, precisamen­te, em se reinventar na crise em boa parte gerada pela força que a vem representa­ndo. Sem isso viverá uma vida de gueto, barulhenta e minoritári­a. E, pior, sem capacidade para retomar em outras bases a luta duríssima por um País mais decente e igualitári­o. Uma luta que por ora parece perdida.

Não tivemos um populista de direita, mas tivemos – e temos – um ‘de esquerda’

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