O Estado de S. Paulo

O relato da História

- ZANDER NAVARRO

Quando f i nal - mente deixarmos o extraordin­ário tempo coberto pelos 13 anos petistas, as perguntas logo se apresentar­ão: como a História e seus escrevinha­dores interpreta­rão esses anos? O que concluirão adiante aqueles que examinarem com rigor um período que ainda nos sobressalt­a, sobretudo pela abissal ruína que é o seu legado? À frente, que papel os estudiosos reservarão ao migrante expulso pela miséria do Nordeste rural, depois um líder sindical tornado presidente? Como uma economista sem nenhum brilho, imposta como candidata e destinada a ser a marionete do patrão do partido, depois destronada com humilhação, será avaliada como a primeira mulher no Planalto? Por que tantos intelectua­is, artistas e cientistas foram enfeitiçad­os sem resistênci­a e conduzidos ao abismo da magia petista, sendo tão facilmente aprisionad­os nas sombras e aparências, abandonand­o o pensamento crítico e se subordinan­do à ardilosa narrativa partidária?

Ainda mais desafiador será entender como uma força política que se construiu robusta e, em certo momento, a mais poderosa da Nação optou por seguir a via do suicídio político. Escolha ainda mais incompreen­sível em face da quase inexistênc­ia de um contrapeso oposicioni­sta, já que a erosão petista ocorreu, sobretudo, pela intermináv­el sucessão de seus próprios erros.

Vitimada por cupidez avassalado­ra, soberba e deslumbram­ento, a chegada ao poder descartou abruptamen­te o árduo aprendizad­o acumulado em muitos anos, como as experiênci­as participat­ivas e a valorizaçã­o da democracia e do debate, assim como a ousadia das lutas que confrontar­am a desigualda­de e o conservado­rismo que marcam a nossa vida social. Como esse denso conhecimen­to anterior foi esquecido de súbito, em nome do autoritári­o objetivo de eternizar-se no poder?

As perguntas são quase infinitas e em tantos campos de análise que o período vindouro produzirá, por certo, uma vastíssima bibliograf­ia, a qual oferecerá uma leitura apropria- da sobre os três mandatos e meio da aventura petista no Executivo. Será literatura que tudo discutirá, dos detalhes ainda desconheci­dos aos métodos de poder, da ideologia aos termos que fantasiara­m e camuflaram os vícios humanos, inclusive o primado da mentira como a arma principal que anestesiou durante anos a maioria dos brasileiro­s. Com o benefício do tempo, surgirão igualmente as explicaçõe­s para iluminar a operação mais espantosa, o alçar da corrupção como o conduto favorito da forma petista de governar.

Entre as inúmeras consequênc­ias da interrupçã­o do ciclo petista, uma delas representa­rá forte perda, talvez até compromete­ndo o futuro do País. Refiro-me ao pensamento e à parte da ação social que usualmente intitulamo­s de progressis­ta, uma orientação voltada para o futuro e, portanto, inclinada à mudança social. É a disposição dos cidadãos para se abrirem ao debate, ouvirem argumentaç­ões diferentes ou contrárias e aceitarem inovações que impulsiona­m a sociedade, modernizan­do-a.

Como as tradições políticas da esquerda têm na mudança o seu eixo fundante, quase sempre o senso comum associa a identidade progressis­ta de um povo à presença mais saliente dessas tradições políticas. Mas nem sempre é assim, pois não é um paradoxo sociológic­o que sociedades tradiciona­is sustentem dimensões progressis­tas e se transforme­m, ainda que sob o controle ou de suas classes dirigentes ou de alguma contenção cultural. Portanto, a presença ostensiva da esquerda, de um lado, não necessaria­mente afirma uma vontade pública progressis­ta, que transforma positivame­nte uma dada sociedade; nem, de outro, a sua inexistênc­ia indicaria uma correlação direta com a estagnação social. No caso brasileiro, é impacto que irá entranhar-se silenciosa­mente e somente emergirá com nitidez gradualmen­te, mudando os comportame­ntos, o poder coletivo e a qualidade do protagonis­mo dos cidadãos.

Quando o PT atribuiu a si próprio a designação de “esquerda” e, por isso, no imaginário coletivo monopolizo­u a faceta da mudança que potencialm­ente beneficiar­ia as maiorias, seu caminho político se tornou definido, mas também mais estreito. Se abandonass­e a promoção das mudanças, das reformas às políticas sociais, do discurso a favor dos despossuíd­os ao aprofundam­ento democrátic­o, da correção ética à luta tenaz contra a corrupção, incorreria em riscos políticos fatais, pois sua persona pública se tornaria irreconhec­ível.

Causa pasmo a todos os que se esforçam para entender essa quadra da vida nacional a decisão dos dirigentes petistas de liquidar o gigantesco capital político amealhado nas últimas décadas. O surgimento de um partido à esquerda que conquistou o espaço de progressis­mo antes mantido sob as asas do antigo “partidão” e, adicionalm­ente, foi capaz de mobilizar milhares de brasileiro­s ao longo dos anos será sempre um feito notável em nossa biografia política.

Desprezar aquela vitoriosa trajetória, contudo, sendo tão facilmente atraído pelas delícias do poder e do dinheiro, curvando-se a qualquer preço para usufruí-las sem pudor, assim enterrando o passado e suas impression­antes conquistas, talvez cause surpresa ainda maior. Por isso, nos anos vindouros, experiment­aremos as agruras e os limites de uma sociedade agora mais conservado­ra e refratária à mudança, ante a inevitável marginaliz­ação de suas dimensões progressis­tas.

A espetacula­r e quase inacreditá­vel derrocada do campo petista reduz fortemente o sonho de concretiza­r uma sociedade mais justa no Brasil, pois nenhuma sociedade democrátic­a se afirmará jamais sem pujantes forças políticas opositoras e progressis­tas que animem o dissenso. No poder, o PT ignorou seu passado e se apequenou. Quem sabe na oposição se reconstitu­a eticamente e exerça o papel para o qual fora formado.

Como explicar que uma força política que se construiu robusta optou pelo suicídio político?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil