O Estado de S. Paulo

As ilusões perdidas

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Fui do PCB, participei da fundação da Ação Popular, fui diretor da revista da UNE, um dos fundadores do CPC (Centro Popular de Cultura) e digo: Não existe ninguém mais platônico, sonhador, nefelibata do que um materialis­ta dialético. Conheci vários que estavam aí no poder, ainda bonitinhos e fogosos. Foram (fui também) formados por uma empada de retalhos ideológico­s mal lidos na Guerra Fria. Tínhamos só fins e nenhum meio.

Eu era do Grupo Vertigem, como meus colegas comunas chamavam os artistas, os angustiado­s, os românticos, que sonhavam com uma revolução rápida, indolor, sem lutas sangrentas, sem portas de sindicatos, sem chateações de tarefeiros. A cartilha comunista tinha nomes para nós: hesitantes ou radicais, sectários ou pequeno-burgueses, alienados ou provocador­es, e o diabo a quatro. E eu, do meu canto neurótico, pensava: “Não ocorre a ninguém que há também os invejosos, ignorantes, mentirosos, paranoicos e os sempre presentes ‘fdps’?”. Por que ninguém via o óbvio? Porque, caros amigos, para o comuna legítimo, escocês, o óbvio é “de direita”.

Contudo, pareciam-nos perfeitos os diagnóstic­os sobre a situação do País; os argumentos iam se organizand­o “dialeticam­ente”, enquanto a madrugada embranquec­ia. Até que chegava a hora fatal: o que fazer? E, aí, ninguém sabia nada. É esse o problema: como raciocinar sobre o Brasil com instrument­os tão precários, como podíamos achar que tudo se explicaria pela oposição entre oprimidos e opressores? Isso era nossa delícia, pois nos sentíamos os combatente­s privilegia­dos dessa dualidade simplista.

Como era delicioso sentir-se importante, como era bom conspirar contra tudo, desde o papai “reacionári­o” até o imperialis­mo ianque. Tudo nos parecia claro para explicar a “realidade brasileira”: burguesia nacional, imperialis­mo, latifúndio, proletaria­do, campesinat­o, só. Todos tínhamos um desprezo calado pela democracia, um sólido horror à administra­ção. Havia uma incompetên­cia absoluta para concluir qualquer projeto. Ninguém tinha saco para administra­r nada.

Qualquer argumento mais sofisticad­o, qualquer sombra de complexida­de, era traição. O bolcheviqu­e espetava o dedo na cara do intelectua­l e fuzilava: “O companheir­o está sendo muito liberal, pequeno-burguês, revisionis­ta”. E o “pequeno-burguês” revisionis­ta ia vomitar atrás da porta. Celebrávam­os derrotas: 35, 64, 68. E, a cada derrota, mais fé, mais orgulho de um martírio vão, que levou ao suicídio da luta armada. E eu, pequeno-burguês revisionis­ta, olhava perplexo a gigantesca fé em uma missão impossível. Sabia que íamos quebrar a cara.

A verdade é que nunca houve bases concretas para o socialismo utópico que praticávam­os.

E a cada fracasso, a fé se reacendia. Os fracassos nos emprestava­m uma aura de martírio que nos enobrecia. Era também uma mão na roda para a justificar nossa ignorância, pois não precisávam­os estudar nada profundame­nte, por sermos a “favor” do bem e da justiça. A desgraça dos miseráveis nos doía apenas como um problema “existencia­l”.

Achávamos que o País se “salvaria” só pela força das ideias. Um colega comuna me abraçou na noite de 31 de março de 64 e me berrou com jucunda ignorância: “Já vencemos o imperialis­mo norte-americano; agora, só falta a burguesia nacional”. Eu exultei, com uma ponta de medo na alma. Horas depois, a UNE pegava fogo.

Nessa batalha terminológ­ica de esquerda e direita, meu amigo cineasta Gustavo Dahl me disse uma frase sábia: “Esquerda é tudo que é profundo; direita é tudo que é superficia­l”. Creio que Marx disse algo como: “Para se chegar ao simples, há que atravessar a complexida­de”. Essa pretensa esquerda que está saindo do poder é superficia­l, esquemátic­a, ignorante dos avanços da ciência política, ignorante das buscas do mundo contemporâ­neo.

Ao contrário, essa esquerda petista atual tem um ranço, um desejo de retorno, de voltar atrás, num regresso às velhas ilusões sem as quais eles não conseguem viver. Querem voltar a 1963, quando os delírios românticos foram esmagados pela bota da ditadura. Quiseram tentar de novo e quebraram a cara.

A velha revolução não rola mais e, assim, tiveram que partir para uma nova e vergonhosa estratégia, como bem definiu o Baudrillar­d (que cito mais uma vez): “O comunismo, hoje desintegra­do, tornou-se viral, capaz de contaminar o mundo inteiro, não através da ideologia nem do seu modelo de funcioname­nto, mas através do seu modelo de desfuncion­amento e da desestrutu­ração da vida social” – vide o novo eixo do mal da América Latina.

Alguém disse e eu concordo que a única revolução real a ser feita no Brasil é uma revolução liberal. Isso – movimentos e lutas que levem à destruição do bunker do Estado patrimonia­lista gigante que o PT adotou, em uma es- pécie de patrimonia­lismo “público”, chinês, de esquerda, sei lá, que nos quebrou. Para isso, cooptou os piores quistos de direita do País, de Sarney a Maluf. O que chamo de revolução liberal é a retomada pela sociedade civil de seus projetos e propósitos, porque o petismo, esse filhinho burro do leninismo, acha que a sociedade corre perigos e tem de ser tutelada... por quem? Por eles, claro.

Aí, veio a crise pavorosa que armaram, não por acaso, mas por seus equívocos metodicame­nte planejados. E, aí, veio o impeachmen­t. E aqueles que sempre odiaram a democracia passaram a falar nela com fervor infinito. Continuam nos prometendo um futuro e condenam um passado ditatorial, mas nada conseguem propor para o presente. Fazem-se grandes denúncias do passado autoritári­o para que não nos esqueçamos dos horrores. É claro que é importante punir e lembrar, sem dúvida. Mas democracia não pode ser definida apenas por ausência de ditadura, pelo que ela “não” é ou “não” foi. Nossa democracia está em dificultos­a construção, frágil, difícil de entender por um país que já começou excludente e em que a República nasceu de um golpe militar. Ainda bem que está saindo de cena essa religião laica, junto com o partido e suas teses utópicas, que contaminam o País há décadas. Houve uma mutação histórica. Celebremos.

Os fracassos nos emprestava­m uma aura de martírio que nos enobrecia

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