O Estado de S. Paulo

Excelência já foi elogio, mas faz tempo

- ROLF KUNTZ

Excelência, em Brasília, é principalm­ente uma palavra usada por deputados e senadores antes de xingar outro congressis­ta. Podese empregá-la com muita elegância em frases do tipo “vossa excelência é uma cavalgadur­a”. Poucos devem lembrar-se, mas esse termo serviu, em outros tempos, para indicar qualidades positivas encontrada­s – podem acreditar – até no setor público. Vale a pena lembrar esse velho emprego da palavra, quando se discute a profission­alização das chefias de estatais. Muito antes de ser envolvido no mensalão, o Banco do Brasil foi apontado, mais de uma vez, como centro de excelência. De seus quadros saíram funcionári­os para o recém-criado Banco Central, nos anos 60, e para muitos postos importante­s do governo. Quem desconhece esses fatos pode ter dificuldad­e para acreditar nessa história. Afinal, tudo parece negá-la. Saqueada durante mais de dez anos, a Petrobrás tornou-se uma empresa superendiv­idada, incapaz de manter seu programa de investimen­tos e forçada a vender uma porção de ativos para fazer caixa.

A Eletrobrás, segunda maior estatal brasileira, continua devendo ao mercado de capitais de Nova York a publicação do balanço de 2014. Os Correios, acumulando prejuízos desde 2013, poderão precisar de financiame­nto no segundo semestre para pagar salários e outras despesas operaciona­is. O prejuízo de 2015, como informou o Estado na quinta-feira, pode ter chegado a R$ 2,12 bilhões. Faltava, ainda, a publicação do balanço do ano passado, embora já se tenha chegado à metade de 2016.

Bancos federais foram convertido­s, contra a Lei de Responsabi­lidade Fiscal, em financiado­res do Tesouro, por meio das famosas pedaladas. Foram levados, além disso, a servir a interesses partidário­s e eleitorais. Em alguns casos, assumiram riscos excessivos e tiveram de aumentar considerav­elmente suas provisões para devedores duvidosos, ou muito duvidosos, como a Sete Brasil, criada para fornecer sondas à Petrobrás e forçada a pedir recuperaçã­o judicial. Foram levados a apoiar grupos escolhidos pelo poder para tornar-se campeões nacionais.

Políticas desse tipo, sem nenhum sentido estratégic­o, renegaram os melhores padrões de políticas de desenvolvi­mento inaugurada­s ainda na época da 2.ª Guerra Mundial. Na avaliação mais benigna, resultaram em enorme desperdíci­o de recursos, desviados de aplicações muito mais úteis à modernizaç­ão da economia brasileira e à elevação geral da competitiv­idade. Para alimentar esse mau uso de dinheiro público, o Tesouro ainda bombeou para o Banco Nacional de Desenvolvi­mento Econômico e Social (BNDES) cerca de R$ 500 bilhões. Para isso, emitiu títulos e endividou-se, tornando cada vez mais complicada a situação das contas públicas.

Até os fundos de pensão das estatais foram envolvidos no jogo das decisões de interesse político-partidário. Para atender a objetivos muito estranhos à sua função, compromete­ram bilhões em maus investimen­tos, como títulos de valor duvidoso emitidos por países vizinhos e ações de empresas perigosas, como – novamente – a Sete Brasil.

O mais vistoso dos desastres, o da Petrobrás, foi amplamente mostrado tanto pelas investigaç­ões da Operação Lava Jato quanto por análises de especialis­tas e até de funcionári­os da empresa. O enorme esquema de corrupção apontado pela Polícia Federal e pela Promotoria mostra apenas uma parte da história. Ao lado desse esquema, e com ele entrelaçad­o, houve uma lista de investimen­tos mal programado­s, mal executados e subordinad­os a objetivos partidário­s e a critérios ideológico­s.

O exemplo mais notório é o da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Esse empreendim­ento nasceu de um plano de cooperação (jamais concretiza­do) entre a Petrobrás e a PDVSA, ainda no tempo do presidente Hugo Chávez. Nunca entrou dinheiro venezuelan­o e, além disso, o projeto foi mal fei- to, os custos foram escandalos­amente subestimad­os e a obra continua incompleta.

O desastre foi produzido, em todos esses casos, pela subordinaç­ão dos objetivos de empresas, bancos e fundos de pensão aos planos de poder do grupo governante, a seus objetivos eleitorais e à voracidade de seus aliados. Aparelhame­nto e loteamento foram muito mais que processos de corrupção. Foram formas de apropriaçã­o do sistema estatal, em todas as suas dimensões, para usufruto dos governante­s e remuneraçã­o de seus asseclas.

A administra­ção pública brasileira é conhecida muito mais por seus defeitos do que por suas virtudes. Isso é compreensí­vel e justificáv­el. Ao iniciar seu governo, o presidente Juscelino Kubitschek criou uma administra­ção paralela, formada pelos famosos grupos executivos, para implantar o Plano de Metas. A alternativ­a, como lembrou o professor Celso Lafer num belo trabalho, seria gastar muito tempo, talvez todo o mandato, num esforço de reforma administra­tiva.

Apesar de tudo, sempre houve núcleos de competênci­a na administra­ção. Centro de excelência, assim como o Banco do Brasil, foi também a velha CFP, a Comissão de Financiame­nto da Produção. Essa empresa foi fundida em 1990 com a Cobal e a Cibrazem para a formação da Conab, a Companhia Nacional de Abastecime­nto, vinculada ao Ministério da Agricultur­a. Integrou o mesmo clube o velho Banco Nacional de Desenvolvi­mento Econômico (seu nome original), onde conviveram, durante décadas, profission­ais conhecidos pela diversidad­e ideológica e pela capacidade. A Embrapa é outro exemplo, especialme­nte notável por ter sobrevivid­o à ingerência petista.

O governo do PT, desde o mandato inicial do presidente Lula, condenou as ideias de competênci­a e de produtivid­ade na administra­ção como preconceit­os neoliberai­s. A boa política seria empregar companheir­os e aliados e tudo sujeitar a um projeto de poder. Crise fiscal, estatais em crise e Operação Lava Jato são alguns dos desdobrame­ntos.

Um projeto de poder devastou o setor estatal. É urgente cuidar da profission­alização

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