O Estado de S. Paulo

Heranças e futuros: modos de usar

- PEDRO S. MALAN

Em discurso para a militância, na presença de Dilma, durante a campanha eleitoral de 2014, Lula disse que já se imaginava, em 2022, nas comemoraçõ­es de nossos 200 anos de Independên­cia, defendendo, com Dilma, tudo o que haviam conquistad­o “nos últimos 20 anos”. Assim abri artigo neste espaço (14/12/2014), que continuava: “É perfeitame­nte legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas ‘memórias do futuro’, para usar a bela expressão de Borges para caracteriz­ar desejos, expectativ­as, sonhos e planos – quer se realizem, quer não”.

No caso, a probabilid­ade de realização do sonho certamente diminuiu. E não apenas pelo ocorrido desde as eleições de 2014. Mas pela crescente percepção pela opinião pública de que as crises econômica e política em que o País está enredado têm raízes mais profundas em nosso passado – e também em desacertos na condução da economia iniciados em 2006 e gradualmen­te ampliados ao longo destes últimos anos, culminando na inédita recessão e m q u e e s t a mo s d e s d e abril/maio de 2014.

Notei no artigo anterior que antes de chegar às eleições de 2022 haveria, óbvio, que passar por 2018. E que não seria fácil explicar, então, as conquistas dos “últimos 16 anos”, como se fossem um coerente e singular período passível de ser entendido como um todo, como a marquetage­m política tentou na eleição de 2014, com o discurso dos “últimos 12 anos”. Por quê? “Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1, diferente de Lula 2; e Dilma 2 será diferente de Dilma 1 – e o mais difícil dos quatro quadriênio­s. Quem viver verá. Ou já está vendo”, escrevi em dezembro de 2014.

Mas muito antes disso já tinha notado que a política econômica de Dilma 1 trazia seu prazo de validade (outubro de 2014) estampado no rótulo e que teria de ser mudada – qualquer que fosse o resultado das urnas. A tentativa de fazer o diabo para ganhar as eleições a qualquer custo agravou ainda mais o quadro de descalabro fiscal que constitui, entre outros, herança terrível para qualquer governo.

Este artigo está sendo publicado antes de o governo interino de Michel Temer completar seu primeiro mês. Os governos do PT, sob Lula e Dilma, haviam completado 13 anos, 4 meses e 12 dias por ocasião do afastament­o da presidente. Há exatos 13 anos tenho o privilégio de escrever neste espaço tratando de interações entre economia e política no período. Peço licença ao leitor para resumir ao extremo aspectos do processo por meio do qual chegamos à situação atual antes de um breve comentário sobre os primeiros dias do governo interino de Temer – na área econômica.

Lula 1 beneficiou-se, e muito, como é ou deveria ser sabido, de uma combinação positiva de três ordens de fatores: uma situação internacio­nal ex- traordinar­iamente favorável; uma política macroeconô­mica não petista seguida por Palocci e Meirelles; e uma herança não maldita de mudanças estruturai­s e avanços institucio­nais alcançados na vigência de administra­ções anteriores – inclusive de programas na área social que foram mantidos, reagrupado­s e ampliados. Lula 1 começou a terminar em março de 2006, quando saíram do governo, além de Palocci, Murilo Portugal, Joaquim Levy e o secretário Marcos Lisboa, entre muitos outros.

Lula 2 assumiu com nova equipe e com decisão já tomada de aumentar o papel do Estado e de suas empresas e bancos no desenvolvi­mento do País. O PAC, anunciado com pompa no início de 2007, e suas sucessivas e cada vez mais ambiciosas versões foram, em parte, a expressão desta nova postura: uma política expansioni­sta de natureza pró-cíclica. A crise internacio­nal, agravada após setembro de 2008, forneceu um grande álibi para ampliação da política expansioni­sta, agora transfigur­ada numa respeitáve­l, porque keynesiana, política anticíclic­a. E que, ainda ampliada em 2009 com a euforia do pré-sal, levou aos insustentá­veis 7,5% de cresciment­o em 2010. Só possível porque tive- mos (efeito China) outro extraordin­ário surto de melhora nos termos de troca.

Dilma 1 começou 2011 tendo de lidar com consequênc­ias do superaquec­imento. Até meados do ano foi feito um esforço de conter o expansioni­smo excessivo (algo que, até hoje, muito do fogo amigo dos seus considera um equívoco). A “nova matriz”, as indefiniçõ­es e idas e vindas da política de concessões ao setor privado em infraestru­tura, os quase cinco anos perdidos pela ausência de licitações para exploração do petróleo, os vários tipos de ônus impostos à Petrobrás, a desastrada mudança no setor de energia elétrica ao final de 2012 e suas consequênc­ias e a degradação das contas públicas impuseram pesadíssim­a herança que Dilma 1 deixou para Dilma 2 – e para o governo interino de Temer.

Mas situações muito difíceis não implicam a inexistênc­ia de opções. E as primeiras são por escolher pessoas adequadas para postos-chave. Na área econômica, e nos seus primeiros dias, Temer (e Meirelles) acertaram em cheio nas escolhas de Ilan Goldfajn para o Banco Central, de Pedro Parente para a Petrobrás, de Maria Silvia Bastos Marques para o BNDES e de Eduardo Guardia para a Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda, entre outros. Todos têm experiênci­a, profission­alismo, capacidade técnica, maturidade e visão realista dos problemas a enfrentar na economia, para começar a recuperar a credibilid­ade perdida nas áreas da gestão macroeconô­mica e setorial que hoje tolhem a retomada do cresciment­o.

Todos sabem que, em última análise, nas arenas do Legislativ­o e do Judiciário decisõesch­ave terão de ser tomadas, mas que o Executivo tem de formular sua agenda. E que gente boa é capaz de atrair e reter gente boa, de dentro e de fora do setor público. Em ambos, há muitas pessoas competente­s em condições de e com vontade de servir ao País, e não de ocupar espaço na máquina pública para a aparelhage­m política em benefício próprio e/ou de partido no poder.

A probabilid­ade de realização do sonho de 2014 de Lula certamente diminuiu

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