O Estado de S. Paulo

Hillary desafia inaptidão, tira Sanders do caminho e lança caçada a Trump

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Como se estivessem fartos de uma disputa em que o resultado final havia muito era óbvio, na terça-feira, os eleitores democratas resolveram dar um basta na brincadeir­a. Bernie Sanders, cuja recusa em reconhecer a derrota desafia a matemática eleitoral, contava vencer em pelo menos quatro dos últimos seis Estados em que o Partido Democrata ainda não havia realizado suas primárias, incluindo o maior deles, a Califórnia.

Mas Hillary Clinton aplicoulhe uma sova, faturando o Estado da Costa Oeste por uma diferença de 13 pontos. Assim, a exsecretár­ia de Estado tem agora uma maioria folgada entre os 4.765 delegados que em julho participar­ão da convenção. Isso faz dela a virtual candidata do partido, a primeira mulher a encabeçar a chapa presidenci­al de uma das duas principais agremiaçõe­s políticas americanas e – como tudo indica que os republican­os cometeram um tremendo equívoco ao escolher Donald Trump – a favorita a ser a próxima presidente dos Estados Unidos. Para uma política cuja inaptidão para entusiasma­r as massas vem se mostrando tão notável quanto sua firmeza e determinaç­ão, assim como para os 15,5 milhões de democratas que votaram nela, é um feito e tanto.

Mesmo antes dessas últimas primárias (ainda falta a da capital Washington D.C.) a Associated Press calculava que Hillary já tinha os 2.383 delegados necessário­s para assegurar a candidatur­a. Mas a apreensão fazia com que sua equipe de campanha tentasse minimizar o fato. O cálculo se baseava na ampla liderança de Hillary entre os superdeleg­ados – os cerca de 715 democratas que ocupam cargos públicos e podem votar no candidato de sua preferênci­a na convenção. Sanders os acusa de serem um instrument­o de manipulaçã­o com que o establishm­ent mantém seu controle sobre o partido. Os auxiliares de Hillary também temiam que, se declarasse­m vitória antes da realização das primárias, seus eleitores poderiam se acomodar e ficar em casa em vez de ir às urnas. Eram preocupaçõ­es excessivas.

Assim como, no mês passado, uma série de vitórias inesperada­mente acachapant­es de Trump, viabilizad­as pelo esfarelame­nto da resistênci­a a sua candidatur­a, pôs fim à pré-campanha republican­a, Hillary obteve em quase todos os Estados mais votos do que previam as pesquisas. Na Califórnia, levantamen­tos recentes indicavam uma disputa apertada. No fim das contas, Hillary conquistou quase 400 delegados a mais que Sanders.

Não admira que ela parecesse extasiada, quase às lágrimas, num comício organizado em Nova York para comemorar sua vitória. De maneira tocante, recordou que sua mãe nasceu em 4 de junho de 1919, mesmo dia em que o Congresso dos EUA aprovou o dispositiv­o que conferiu às mulheres o direito de votar: “Quem dera ela pudesse ver a filha tornar-se a candidata do Partido Democrata à presidênci­a.”

Escada. Trump provavelme­nte deu uma mãozinha a Hillary nessa reta de chegada ao ofender – e, portanto, mobilizar – os eleitores não brancos, que são um dos grupos em que a ex-secretária de Estado mais têm força. Na condição de candidato republican­o, tendo recebido nas últimas semanas o apoio da maior parte dos principais líderes do partido (ainda que, a portas fechadas, muitos o desprezem), esperavase que o empresário-celebridad­e baixasse o tom da grosseria que se tornou marca registrada.

O próprio magnata havia se comprometi­do a comportar-se com a “dignidade apropriada a um candidato presidenci­al quando for a hora”. Em vez disso, Trump dirigiu ataques carregados de intolerânc­ia ao juiz responsáve­l por uma ação em que um de seus empreendim­entos que foram à falência, a Universida­de Trump, é acusado de frau- de. O republican­o acusou Gonzalo Curiel de querer prejudicál­o por suas propostas contra imigrantes ilegais, pois, disse Trump, o juiz é “mexicano” – na verdade, Curiel nasceu no Estado de Indiana. Não houve boca de urna na Califórnia, onde os hispânicos representa­m mais de 25% do eleitorado, mas Hillary venceu em todos os distritos de maior presença hispânica.

Num posto de votação em Santa Ana, uma área ao sul de Los Angeles onde os hispânicos são majoritári­os, eram muitos os eleitores que diziam estar ali para votar em Hillary, com frequência emendando comentário­s depreciati­vos sobre Trump. Anita Hernandez, uma secretária escolar aposentada, diz que optar por Hillary acabou sendo uma “decisão fácil”, muito embora num primeiro momento ela estivesse inclinada a votar em Sanders: “Acho que ele deveria desistir e deixar que ela parta para cima do Trump”. O também aposentado Leo Luna votou da mesma forma que Hernandez, apesar de pessoalmen­te preferir o senador de Vermont. “A gente tem de se unir em torno de uma candidatur­a forte”, diz ele.

O fim. De maneira surpreende­nte, na quarta-feira, Sanders reafirmou que continuará na disputa até a convenção. É possível que ainda reavalie essa decisão. Seus colaborado­res, que nunca foram numerosos, estão pulando fora do barco. No mesmo dia, Jeff Merkley, único apoio que Sanders tem no no Senado, e Raul Grijalva, um dos poucos partidário­s da Câmara, disseram que ele deveria a abandonar. Ao mesmo tempo, seu comitê de campanha vem demitindo a maior parte dos funcionári­os.

Na quinta-feira, ao sair de um encontro com Barack Obama na Casa Branca, Sanders afirmou que fará de tudo para impedir que Trump se torne presidente e que está disposto a colaborar com Hillary para atingir esse objetivo, mas silenciou quando indagado se pretendia desistir. Horas depois, Obama anunciou apoio à ex-secretária de Estado.

Antes que a votação se encerrasse na Califórnia, um dos principais assessores de Sanders deu a entender que a ideia talvez seja manter a candidatur­a até as primárias de Washington, que acontecem na terça-feira, para então entregar os pontos. Pouco conhecido antes de anunciar sua pré-candidatur­a à presidênci­a, no ano passado, Sanders realizou uma campanha extremamen­te eficaz e, para muitos de seus 12 milhões de eleitores, muito motivadora; agora acabou.

Em certa medida, foi isso que Hillary sinalizou em 2 de junho, ao pronunciar o que se pretendia que fosse um discurso sobre política externa, mas que na realidade foi uma crítica demolidora a quase tudo que Trump já disse sobre o assunto. As ideias do republican­o, disse ela, “no fun- do, nem ideias são: não passam de um amontoado sem nexo de bravatas, vendetas pessoais e mentiras deslavadas.”

A fala foi resposta aos ataques cada vez mais virulentos de Trump, que acusou Hillary de ser cúmplice do adultério do marido e insinuou que ela estaria envolvida no suposto assassinat­o de Vince Foster, auxiliar de Bill Clinton que, segundo investigaç­ões, suicidou-se em 1993.

Também foi música para os ouvidos de muitos dos que a apoiam. Profundame­nte frustrados com suas deficiênci­as em cima do palanque – que vêm sendo exacerbada­s pelo fato de Hillary precisar tratar Sanders com luvas de pelica, pois corteja seus eleitores e tem simpatia por suas ideias –, fazia algum tempo que eles esperavam vê-la desancando o republican­o.

Por se mostrar dura na queda em termos emocionais e ser dotada de um rigor intelectua­l digno de um procurador de Justiça, Hillary se sai melhor conquistan­do o respeito dos eleitores. Mesmo assim, não se pode culpá-los por não terem muita clareza sobre o que exatamente a democrata defende e propõe. Seu programa contém um sem-fim de bemintenci­onadas generalida­des de centro-esquerda, mas nenhuma ideia-chave. Até Bill Clinton, que diz conhecê-la melhor que ninguém, elogia as qualidades “aperfeiçoa­doras” de Hillary, mas não sua índole visionária.

No entanto, como argumento em favor de um terceiro mandato democrata, e não como a transforma­ção que Obama, ao aparecer na hora e no lugar certos, pôde prometer, melhorias moderadas pelo menos são algo em que se pode acreditar. Além do mais, o que muitos eleitores parecem desejar é uma disputa feroz entre republican­os e democratas. Para isso, os democratas escolheram a mulher certa.

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Doug Mills/The New York Times-7/6/2016 Resistênci­a. Após disputa interna mais longa que o esperado, candidatur­a se consolida
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