O Estado de S. Paulo

As doenças que afetam 13 milhões. E são raras

Dificuldad­es para obter auxílio levam à judicializ­ação, que custa R$ 1,2 bi ao País

- Clarissa Thomé

O técnico em eletrônica Fabio Almeida tinha 12 anos quando viu o pai adoecer, acometido por dores terríveis. Em pouco tempo, os sintomas evoluíram: perda de sensibilid­ade em pernas e braços, fraqueza, atrofia muscular. Tinha paramiloid­ose, neuropatia degenerati­va e hereditári­a. Morreria aos 46 anos pela doença que também matou pai, avó e bisavô.

Aos 36 anos, Almeida descobriu que tinha a mesma doença dos antepassad­os. Como o técnico em eletrônica, 13 milhões de brasileiro­s sofrem de algum tipo de doença rara – aquelas que afetam menos de 65 pessoas em grupos de 100 mil habitantes. Essas enfermidad­es levam pacientes a procurar, em média, dez médicos an- tes de receber o diagnóstic­o. Muitas vezes enfrentam uma batalha judicial para conseguir o tratamento.

Desde o ano passado, os pacientes aguardam que o Ministério da Saúde estabeleça protocolos clínicos para 12 síndromes raras, entre elas a paramiloid­ose. Os procedimen­tos que vão orientar todo o tratamento, indicar centros de referência, profission­ais adequados e os medicament­os recomendad­os para cada tipo de enfermidad­e foram anunciados há um ano.

Hoje, para conseguir a maioria dos remédios que vão garantir melhor qualidade de vida, as famílias de pacientes com doenças raras recorrem à Justiça – os gastos com demandas judiciais do Ministério da Saúde saltaram de R$ 139,6 milhões, em 2010, para R$ 1,2 bilhão em 2015. Só neste ano, já foram de- sembolsado­s R$ 686,4 milhões. Dos 20 medicament­os mais demandados por ações judiciais, 12 foram incorporad­os ao SUS entre 2014 e 2016. Estados e municípios também são acionados, elevando ainda mais os valores. “A judicializ­ação existe por falta de lei ou de regulament­ações”, afirmou Almeida, que preside a Associação Brasileira de Paramiloid­ose.

Ao receber o diagnóstic­o, ele recorreu à Justiça para garantir o medicament­o que interrompe a progressão da doença e custa R$ 700 mil anuais. Recebeu o remédio por dois anos, com algumas interrupçõ­es. Até que decidiu inscrever-se em uma pesquisa para novo medicament­o. Pela lei brasileira, os pacientes que fazem parte de ensaios clínicos têm direito a receber o medicament­o por toda a vida, caso se comprove eficaz. “Quero me li- vrar dos pedidos judiciais.”

Almeida assumiu um risco: pode estar recebendo há 13 meses o placebo. Só ao fim da pesquisa os pacientes saberão quem estava no “grupo-controle” e quem realmente estava sob tratamento. “Não sei em que grupo estou. Mas o importante é que em dois meses começa uma nova fase em que todos os pacientes vão receber o medicament­o. Não dependo mais do governo.”

Rotina. Não é o caso da dona de casa Simone Arede, de 51 anos, que frequenta tanto o Fórum de São Gonçalo, cidade na região metropolit­ana do Rio, que os ascensoris­tas já a reconhecem. A cada três meses, ela ingressa com ação para garantir ao filho Thiago, de 30 anos, o fornecimen­to da fórmula que dá ao rapaz os nutrientes de que precisa. Aos 19 anos, Thiago foi diagnostic­ado com homocisten­úria, disfunção que interfere na síntese de proteínas. O tratamento custa R$ 10 mil mensais.

Para o professor Natan Monsores, da Faculdade de Saúde da Universida­de de Brasília e coordenado­r do Observatór­io de Doenças Raras, o estabeleci­mento de protocolos clínicos é fundamenta­l para romper o que classifica de “ciclo perverso”. “A indústria farmacêuti­ca torna reféns tanto os pacientes quanto o governo. Ela vende a ideia de que o medicament­o ex- perimental é o que o paciente tem de consumir e força por tabela o governo a comprar o medicament­o sem licitação, sem negociar o preço, sem transferên­cia tecnológic­a para o Brasil”, afirmou.

Com o estabeleci­mento de protocolos, o governo reconhecer­ia a existência desses pacientes e teria maior poder de barganha com os laboratóri­os, disse o coordenado­r. O Observatór­io de Doenças Raras desenvolve aplicativo para celular, o RarasNet, que deixará informaçõe­s sobre as principais doenças raras à disposição de profission­ais de saúde.

Para unir pacientes de doenças raras, para que eles tenham mais força de pressão política, a Sociedade Brasileira de Genética Médica, em parceria com a agência Tino Comunicaçõ­es e associaçõe­s de pacientes, criou o portal Muitos Somos Raros. “Os portadores dessas doenças têm dificuldad­e de conhecer pessoas com a mesma condição, de encontrar informaçõe­s em português e, principalm­ente, corretas”, disse a geneticist­a Lavínia Schuler-Facciniue, presidente da sociedade.

Governo. Procurado, o Ministério da Saúde informou que o SUS oferece atendiment­o para prevenção, diagnóstic­o, tratamento e reabilitaç­ão de pacientes com doenças raras e conta com 36 protocolos. Em nota, lembra que “ampliar e atualizar os protocolos clínicos e as diretrizes terapêutic­as” estão entre as ações prioritári­as apresentad­as pelo ministro Ricardo Barros em 13 de maio, mas não estabelece prazos para as 47 síndromes que aguardam a regulament­ação dos procedimen­tos.

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FABIO MOTTA/ESTADÃO No fórum. Simone e o filho Thiago precisam custear tratamento de R$ 10 mil mensais
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