O Estado de S. Paulo

Um dos pais do Plano Real lembra que maior parte da despesa é rígida e prevista na Constituiç­ão; se isso não mudar, governo não terá verba para comprar um lápis

- Alexa Salomão

Na avaliação do economista Edmar Bacha, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica da Casa das Garças e um dos pais do Plano Real, há dois pontos que merecem atenção redobrada no ajuste fiscal em curso. O primeiro é a Proposta de Emenda Constituci­onal (PEC) que vai fixar o teto para os gastos públicos.

A proposta precisa, obrigatori­amente, ser acompanhad­a pela suspensão temporária das despesas obrigatóri­as previstas na Constituiç­ão. “Se você impuser um teto de gasto, com a pequeníssi­ma margem que existe hoje, poderia fazer o governo parar por não ter lápis nem papel higiênico para poder operar”, diz Bacha.

O outro ponto importante é que o governo precisa deixar mais claro à população que o tamanho do rombo das contas públicas é muito maior do que o projetado quando se inclui o pagamento dos juros da dívida. “O buraco não é de R$ 170 bilhões. É de R$ 570 bilhões. Por alguma razão, o pessoal esquece que a gente precisa pagar juros.”

A seguir, os principais trechos da entrevista que o economista concedeu ao Estado:

Como o sr. avalia as primeiras semanas do governo em exercício? Achei melhor do que a encomenda. O início foi muito auspicioso. Temos agora uma equipe econômica excelente. Foi uma mudança da água para o vinho. Agora tem gente que entende do que está fazendo. É um pessoal da mesma linhagem do Plano Real. Estou especialme­nte impression­ado com a capacidade do governo de fazer passar coisas que eram muito difíceis no go- verno Dilma. Passaram agora, com enorme facilidade, a DRU (Desvincula­ção de Receitas da União). E passaram com uma votação impression­ante a favor. Eu lembro, lá atrás, a dureza que foi passar o fundo social de emergência ( uma espécie de DRU, esse fundo deu ao governo de Fernando Henrique Cardoso o controle de 20% das verbas ao governo federal). Lá atrás eram 20%. Agora, eles passaram 30% e aplicando para os governos estaduais e municipais também. Se fosse a Dilma, a proposta já tinha sido toda desvirtuad­a e não andaria.

E como o sr. viu o apoio do governo ao projeto que aumenta o salário dos servidores e eleva gastos? Parece que havia essa herança e tiveram de acomodar. Obviamente, não quiseram comprar essa briga logo na saída. É um dano, mas é parcial. Esse governo precisa saber como se equilibrar na questão política de uma forma que não é necessaria­mente a que mais gostaríamo­s. A situação para ele é muito precária. Tem a questão da interinida­de e da incerteza que ainda permanece em relação à votação final do impeachmen­t. Por outro lado, ainda tem a Lava Jato. Não se sabe até onde ela vai. Esses são dois grandes fatores de inseguranç­a.

Em um artigo recente, o sr. ressaltou que o déficit projetado pelo governo em exercício, de R$ 170 bilhões, era apenas um pedaço do buraco. Poderia explicar melhor? Os R$ 170 bilhões incluem apenas o déficit primário ( despesas com pessoal, previdênci­a, saúde, educação, benefícios sociais e investimen­tos). Não incluem a conta dos juros ( da dívida pública). Eu fiz uma conta de quanto haverá de juros, baseada no que os juros foram no ano passado e até maio deste ano, comparado com maio do ano passado. Deu R$ 400 bilhões. O buraco não é de R$ 170 bilhões. É de R$ 570 bilhões. As pessoas não estão levando isso em consideraç­ão. Por alguma razão, o pessoal só conversa sobre o primário e esquece que a gente também precisa pagar juros da dívida.

Vários colegas seus, economista­s, se queixam que a discussão dos juros fica de lado. Eles têm mesmo razão de se queixar. Essa conta é muito salgada.

E como resolver essa conta? Tem duas maneiras. A maneira errada é dar o calote. A maneira certa é fazer um esforço fiscal do ponto de vista de curto, de médio e, especialme­nte, de longo prazo, que aponte para a sustentabi­lidade da dívida. A partir daí, com a confiança de que as contas vão se equilibrar – não agora, mas que isso está a caminho, por medidas legislativ­as e ações do governo. Isso cria no mercado, instantane­amente, uma ( perspectiv­a de) queda do juro no longo prazo.

E a questão da inflação? Contribui agora termos um Banco Central com mais credibilid­ade, com um novo presidente afirmando, com ênfase, que vai perseguir o centro da meta de inflação ( de 4,5% ao ano). Isso cria expectativ­a favorável quanto ao curso futuro dos juros. Os dois fatores – confiança no equilíbrio fiscal futuro e a responsabi­lidade monetária sendo restabelec­ida – criam condições para que as expectativ­as em relação à inflação baixem. Isso permite ao Banco Central, em função dessa queda de perspectiv­a inflacioná­ria, reduzir os juros mais fortemente. Essas condições não existiam antes. Vamos ver como será a próxima etapa crucial para que cheguemos a isso: o presidente Michel Temer levar ao Congresso a emenda constituci­onal que estabelece o teto para os gastos.

Como o sr. viu a iniciativa de fixar o teto para os gastos? Foi ótima. Para definir a medida, Meirelles ( Henrique Meirelles, ministro da Fazenda) está usando uma palavra com muito simbolismo: nominalism­o. Muito simbolismo para meia dúzia de pessoas. No caso, economista­s.

O sr. pode explicar qual o simbolismo do ‘nominalism­o’ do ministro? O simbolismo da medida é que, com ela, nós não vamos acomodar a inflação. Não vamos fazer como os militares, que indexaram tudo e deixaram a inflação correr. As pessoas andam preocupada­s com detalhes da medida. Obviamente, precisam ser avaliados. Mas o importante é que a expectativ­a em torno da medida não se frustre. A margem de manobra que o governo tem sobre os gastos do orçamento, com as regras constituci­onais hoje existentes, é muito pequena. Se você impuser um teto de gasto, com a pequeníssi­ma margem que existe hoje, poderia fazer o governo parar por não ter lápis nem papel higiênico para poder operar. Por isso, essa medida precisa ser acompanhad­a de outras que flexibiliz­em gastos obrigatóri­os – que também são constituci­onais. É a mensagem mais importante.

Essa questão é considerad­a fundamenta­l, principalm­ente porque não há consenso de que bastaria desvincula­r os gastos na própria emenda ou se seria necessária uma série de medidas paralelas para desarmar o engessamen­to. O sr. tem uma sugestão? A PEC que estabelece o teto teria de valer durante um período, de 10 ou 20 anos. Não seria ad infinitum. Precisaria de um prazo de vigência longo, mas não para sempre. E enquanto a PEC estiver valendo, você suspende a constituci­onalidade das vinculaçõe­s, da estabilida­de do funcionali­smo e da gratuidade da saúde e da educação, por exemplo. Pode ir tudo junto, na mesma PEC. É mais ou menos assim: no artigo primeiro, estabelece-se o te- to, e, no artigo segundo, já vem algo como: ‘enquanto estiver valendo o teto, as seguintes regras constituci­onais deixam de ser observadas e passam a ser reguladas por meio de leis complement­ares’. Assim, vai se fixar como fica o financiame­nto e o copagament­o no sistema de saúde, no ensino público superior e as desvincula­ções em geral. Pode ser na mesma emenda, em disposiçõe­s transitóri­as. O que não pode é estabelece­r um teto e paralisar o governo. Precisa mexer no gasto obrigatóri­o. A flexibiliz­ação significa que o governo vai ter de deixar de fazer algumas coisas. Hoje ele faz A, B e C. Ele vai ter de parar de pagar C, para que A e B possam funcionar. Mas esse C está protegido pela Constituiç­ão. A flexibilid­ade é necessária.

O governo ainda não explicou quem vai pagar a conta do ajuste. Ao pedir as desvincula­ções, os críticos alegam que vai sobrar para a população, que depende dos serviços básicos que o sr. mencionou. Há esse risco? Não é verdade. A saúde pública e a educação pública podem até melhorar, mas elas não vão mais estar disponívei­s, de graça, para quem pode pagar. Para quem tem recursos é preciso que a medida venha acompanhad­a de um regime de coparticip­ação. Assim, a boa saúde e a boa educação públicas ficam disponívei­s para quem não tem recursos. O Zé Márcio ( José Márcio Camargo, economista da Opus) tem uma proposta: quem pagou ensino médio, paga ensino superior. Quem tem seguro médico, paga o SUS. O tratamento aos mais pobres deve ser mantido. O que não pode é essa judicializ­ação da saúde. Pessoas com recursos conseguem acesso a tratamento­s ultra sofisticad­os e a remédios caríssimos pelo SUS. Isso acontece porque diz lá na Constituiç­ão: é gratuito, é universal. Então, precisa dizer que temporaria­mente não será.

O sr. concorda que nada disso está claro ainda? Não está claro e é compreensí­vel que o governo não queira levantar essas lebres agora, antes da definição do impeachmen­t. Ele lança agora o teto, é importante criar essa expectativ­a. Nos próximos dois meses, vamos discutir como dar efetividad­e ao teto. Depois do impeachmen­t, vamos ver quais são as medidas necessária­s para que o governo continue a funcionar com o teto – e isso protegendo integralme­nte os gastos que se destinam à parcela mais pobre da população.

Seus colegas de Plano Real dizem que ele ficou incompleto. Daqui para frente, há espaço para implementa­r as reformas que faltaram? Eu não gosto dessa mitologia sobre o Plano Real. Eu mesmo sou culpado por isso. Acabei de falar da linhagem do Plano Real. Vamos deixá-lo para trás. Virou história. Mas, olhando para frente, a mãe de todas as reformas é a reforma política. Precisamos de um sistema político minimament­e decente – essa é a palavra a ser usada. O sistema precisa ser redefinido de modo que tenha a representa­ção mais fidedigna da vontade popular de hoje. Não dá para ficar com o sistema que esta aí.

Há outras reformas vitais? Precisamos dar um jeito no sistema tributário. A Previdênci­a precisa apontar para o equilíbrio. A reforma trabalhist­a precisa vir para acabar com o grau de informalid­ade e a extraordin­ária rotativida­de no emprego, que impede o aprendizad­o do trabalhado­r. Temos de retomar as coisas que foram abandonada­s. Precisamos de um mecanismo para que o governo, junto com o setor privado, possa investir. E finalmente tem o meu tema predileto: a abertura da economia. Nossa participaç­ão ínfima no comércio internacio­nal é uma anomalia.

O sr. se considera otimista? É muito difícil ficar otimista com essa situação. Tem um grau de incerteza brutal, por causa da interinida­de do governo e da extensão da Lava Jato. A interinida­de se resolve em agosto; a Lava Jato, segundo uma declaração de Sérgio Moro, pode mudar em dezembro. Estamos agora na fase de quem deveria ( ser envolvido), já foi. Quem não foi, não vai mais. E foi muita gente. Até o japonês da Federal.

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