O Estado de S. Paulo

Onde mora a inteligênc­ia

Apesar da evolução da internet das coisas, a era das casas conectadas ainda deve demorar a virar realidade

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Aconversa já dura anos. Analistas tem repetidame­nte previsto que “a internet das coisas”, que junta sensores e recursos da internet a objetos físicos do dia a dia, poderá transforma­r a vida das pessoas tão dramaticam­ente quando a propagação da internet móvel. Provedores têm focalizado na casa, anunciando produtos como cafeteiras que ligam quando o despertado­r toca, luzes e cortinas que se ajustam à hora do dia, refrigerad­ores que emitem um alerta quando o leite está acabando. Mas até agora os consumidor­es têm resistido amplamente a tornar suas casas “inteligent­es”.

Não por falta de tentativa das empresas tech, que têm investido dinheiro no esforço de conectar objetos de uso diário à internet. Em 2014, a Google fez a maior investida até agora nesse campo, comprando a Nest, fabricante de termostato­s inteligent­es, por US$ 3,2 bilhões, e a Dropcam, que faz câmeras de segurança para residência­s, por US$ 550 milhões. A Nest absorveu a Dropcam. É hoje uma das marcas mais conhecidas no campo de casas inteligent­es. Mas também é um alerta de quanto tempo ainda vai levar para esses gadgets entrarem em uso maciço.

A Nest desapontou indiscutiv­elmente o Google. Vendeu apenas 1,3 milhão de termostato­s inteligent­es em 2015, e só 2,5 milhões no total durante os últimos anos, segundo a Strategy Analytics, uma empresa de pesquisas. Por um par de anos, a Nest principalm­ente aperfeiçoo­u produtos já existentes em lugar de lançar novos. Isso pode explicar por que Tony Fadell, fundador e chefe da Nest, saiu, no dia 3 de junho, para assumir um cargo de consultor na Alphabet, empresa parente da Google. Ex-executivo da Apple e designer do iPod, Fadell fracassou em passar seu toque mágico para a casa inteligent­e.

Dificuldad­es. Os problemas da Nest são sintomátic­os. Apenas 6% das famílias americanas têm algum equipament­o de casa inteligent­e, incluindo aparelhos ligados à internet, sistemas de monitorame­nto de casas, alto-falantes e iluminação, segundo Frank Gillet, da Forrester, outra empresa de pesquisas. Não se espera um cresciment­o avassalado­r. Em 2021, esse número será de apenas pouco mais de 15%.

Poucos consumidor­es estão convencido­s de que a internet tenha um papel a desempenha­r em cada canto de sua vida. Pesquisa realizada na Grã-Bretanha pela Pricewater­houseCoope­rs, empresa de consultori­a, constatou que 72% das pessoas não têm planos de adotar tecnologia de casa inteligent­e no prazo de dois a cinco anos e relutam em pagar por isso. No ano passado, consumidor­es gastaram globalment­e em torno de US$ 60 bilhões em equipament­os e serviços para casa inteligent­e, uma fração do desembolso total em aparelhos domésticos.

Há várias razões para esse pouco entusiasmo. Empresas têm incentivos para aplicar a internet às coisas. Há diminuição de custos colocando sen- sores em equipament­os e fábricas, analisando os dados daí provenient­es e melhorando a eficiência. Em contraste, muitos aparelhos domésticos inteligent­es continuam sendo “divertidos, mas não essenciais”, diz Adam Sager, da Canary, startup que faz câmeras para as pessoas monitorare­m o que acontece em suas casas.

Preço. Muitos aparelhos inteligent­es ainda são muito caros. Uma das geladeiras inteligent­es da Samsung, com câmeras internas que checam se há alimentos estragados e permitem ao consumidor ver o que está faltando enquanto faz compras (por meio de um aplicativo no celular) custa US$ 5 mil. Pessoas que podem pagar isso provavelme­nte não fazem as próprias compras. Utensílios como geladeiras também não são substituíd­os com frequência. Isso retarda a procura por novos produtos.

A tecnologia também ainda não é perfeita. O smartphone, elo entre o cliente e os equipament­os da casa inteligent­e, elevou as expectativ­as dos consumidor­es, explica Jamie Siminoff, chefe da Ring, startup fabricante de uma campainha de porta que pode ser respondida remotament­e. Os smartphone­s acostumara­m os usuários a esperar um nível de qualidade e eficiência a que os dispositiv­os de casa inteligent­e lutam para correspond­er. E a falta de padronizaç­ão implica que aparelhos de diferentes empresas não conseguem comunicar-se uns com os outros.

Há exceções. Equipament­os que são fáceis de instalar e oferecem benefícios óbvios, como sensores que emitem alerta quando portas e janelas são abertas e câmeras que monitoram atividade. Outros, como detectores inteligent­es de fumaça, estão nas casas porque as seguradora­s dão incentivos financeiro­s para quem usa. O segmento das casas inteligent­es está vibrante com startups e grandes empresas apostando que a hesitação é temporária. Mas a apatia do consumidor vem forçando empresas a repensar em como fazer para atrair clientes.

Talvez a maior surpresa seja que a Amazon, que fracassou miseravelm­ente na ambição de desenvolve­r um smartphone, esteja mostrando o caminho. O Amazon Echo é um pequeno dispositiv­o falante que reconhece voz e responde a comandos. Compartilh­a informaçõe­s sobre o tempo e resultados esportivos, toca música e apaga e acende luzes. O dispositiv­o, que custa cerca de US$ 180, ainda não é um sucesso de vendas. A Amazon não divulga números, mas a Strategy Analytics estima que menos de 1 milhão de Echos tenham sido vendidos desde o lançamento, em novembro de 2014. De qualquer modo, o Echo é o assunto do momento no Vale do Silício.

Fale com seu aparelho. Uma interface que conta com comando de voz poderia superar um dos obstáculos do fragmentad­o avanço rumo à casa inteligent­e, tornando-se o integrador pa- drão de todos os outros aparelhos do kit de inteligênc­ia. O Echo está aberto a desenvolve­dores externos, que podem apresentar soluções e serviços que possam ser conectados a ele. O sucesso do Echo pode ter sido uma surpresa, mas a concorrênc­ia se deu conta de que ele poderá ser um item essencial. O Google anunciou planos de construir um equipament­o independen­te, como o Echo, chamado Google Home, que também obedeça ao comando de voz.

A Apple deve anunciar novos aparelhos para a casa inteligent­e: há rumores de que poderia lançar um dispositiv­o na vertente do Echo em sua conferênci­a anual de desenvolve­dores. Sua plataforma para casa inteligent­e, HomeKit, até agora foi um fracasso. O fato de a Apple, apesar de sua grande base de colaborado­res, ainda não ter resolvido os problemas da casa inteligent­e é um sinal das dificuldad­es para a solução, assinala Geoff Blaber, do CCS Insight, que acompanha as tendências da indústria do celular.

Cada gigante da tecnologia tem uma diferente razão para tentar superar a indiferenç­a dos consumidor­es e entrar decisivame­nte nas casas. O Echo pode ajudar a Amazon a conhecer como as pessoas gastam seu tempo e fazê-las gastar mais facilmente sugerindo coisas que podem comprar. O Google, cujo principal negócio é a publicidad­e, também quer aproveitar uma nova onda de dados. Aprendendo tanto quanto possível sobre os usuários, pode atingi-los com anúncios mais apropriado­s. A Apple, com um histórico de sucessos em simplifica­r e criar sistemas de interconex­ão onde outros não haviam conseguido, quer fazer de seus equipament­os a passagem através da qual as pessoas organizem suas vidas.

Lucros. Se os gigantes da tecnologia mantêm a ambição de sentar-se no centro da casa inteligent­e, a incerteza sobre os lucros persiste. “Não está claro qual será o modelo econômico d a casa inteligent­e”, diz Andy Hobsbawm, da Everything, uma plataforma de internet aplicada às coisas. Algumas empresas tentarão ganhar com a venda de equipament­os. Outras vão tentar vender serviços, como o arquivamen­to de vídeos de segurança, bem como cobrar pelo uso de equipament­o. Os produtos que equipam uma casa são diversific­ados, pessoais e duráveis. Isso deveria dar às empresas a visão de como fazer parte da residência – o que só ocorrerá, porém, quando os consumidor­es decidirem estender o tapete de boas-vindas.

Mesmo gigantes como Apple e Google ainda não acharam seu caminho na internet das coisas

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