O Estado de S. Paulo

Juntaro improvável

A escultora Ana Paula Oliveira une materiais e tradições em suas peças

- Camila Molina

Os pássaros estão a ponto de alçar voo, mas, fundidos em bronze, os sanhaços da obra Um Pouco Sobre Sólidos (2014), de Ana Paula Oliveira, simbolizam apenas “impulso” da ação. O trabalho da artista, exposto agora na Galeria Marcelo Guarnieri, em São Paulo, tem uma estranha leveza, uma beleza triste com as esculturas dos pequenos bichos instaladas sobre placas de vidro – e mesmo as peças geométrica­s de ferro que sustentam a estrutura daquela criação não parecem pesadas, repousadas entre os planos transparen­tes.

Diante de sua mostra, a escultora, que realizou sua última individual na cidade em 2013, afirma que gostaria de fazer com suas obras o que o diretor japonês Akira Kurosawa consegue com os filmes: ser ao mesmo tempo “tão forte e tão leve”, ser contundent­e, firme, falando com delicadeza. “Aquilo que sinto quando assisto a ele é o que queria passar”, resume a artista, que já usou grandes dormentes de madeira para suspender sacos de plásticos com água e peixinhos (como esquisitas aliteraçõe­s dos globos com peixes dou- rados das pinturas de Matisse) – na instalação Ainda Não (2010) – e jabuticabe­iras – em Meu Chapéu tá no Alto do Céu (2012).

Na semana em que a arte brasileira perde um de seus maiores criadores, Tunga, morto na última segunda-feira, 6, aos 64 anos, vale a pena resgatar uma fala do escultor – “Percebi que arte não era outra coisa senão juntar coisas; fazer com que, ao juntar coisas, apareçam coisas que nos surpreenda­m, coisas que estão ali, mas estão veladas”. A força dos trabalhos de Ana Paula Oliveira também está no exercício desse “artifício”, o de juntar o que é improvável.

No caso da exposição Círculo de Giz e Um Pouco Sobre Sólidos, em cartaz até 16 de julho na Galeria Marcelo Guarnieri, pássaros (sanhaços fundidos em bronze ou pequenos manons taxidermiz­ados) pertencem a trabalhos feitos também com peças de ferro e vidros. Ou, por exemplo, uma estátua de alumínio, réplica do histórico Discóbolo, do grego Míron, tem partes compostas com plantas (popularmen­te conhecidas como espadas de São Jorge). “Se você coloca coisas opostas juntas, você acentua cada uma delas”, define Ana Paula Oliveira, nascida em 1969, em Uberaba. “Não é 8 ou 80, é encontrar no meio a polarizaçã­o”, diz.

A própria criadora identifica uma nova e surpreende­nte “elaboração” em suas obras – os elementos de suas criações não são mais “mal acabados” como antes e os materiais não mais se juntam como “atletas correndo provas separadas numa mesma raia”, fruto de “um arbítrio distraído, estético”, já escreveu o artista Nuno Ramos em 2009 sobre a escultora.

Sendo assim, na série Vistaña (2016), os desenhos dos voos “predestina­dos” de manons taxidermiz­ados são cortados, por meio de jatos d’água, em placas de vidro. Nas peças entre o bidimensio­nal e o tridimensi­onal, com formas geométrica­s traçadas e pássaros mortos embutidos, coexistem “a prática manual, primária; a industrial, reta e até agressiva; e o passarinho, que simboliza um costume de muito tempo atrás”, explica Ana Paula Oliveira.

Mais ainda, o Círculo de Giz que aparece no título da mostra é uma menção, por meio de Vistaña, aos “desenhos que você faz e que se apagam” – e os voos, etéreos, estão representa­dos por linhas duras, geométrica­s.

Mas é Vetores (2016), a réplica “meio cafona” do Discóbolo com as espadas de São Jorge a peça que, afinal, “está causando”. A inusitada imagem reto- ma a história da escultura ao remeter à estátua grega datada de mais de 400 anos a.C. e que representa o atleta na iminência de lançar um disco.

O homem (ideal) representa­do “sugere movimento” e indica uma “tensão” que Ana Paula Oliveira também relaciona como uma caracterís­tica presente em sua produção artística. A réplica, entretanto, foi feita em alumínio, “material chulé”, nada tradiciona­l. “O ( escultor) Amilcar ( de Castro) dizia que o alumínio não tem caráter”, conta a artista, que surpreende o espectador ao materializ­ar as linhas da ação do atleta (os vetores) com as espadas de São Jorge. Essas plantas, ela lembra, “quer queira ou não, têm uma simbologia forte” e evocam nossos antepassad­os. É uma escultura sobre a junção de distinta tradições.

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FOTOS DE SERGIO CASTRO/ESTADÃO Leveza. Ana Paula Oliveira e detalhe de ‘Um Pouco sobre Sólidos’
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Tensão. O ‘ Discóbolo’ e espadas de São Jorge em ‘Vetores’
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Desenho. Na série ‘Vistaña’, pássaro taxidermiz­ado e vidro

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