A tornozeleira
Não sei bem porque nesses últimos dias não me sai da cabeça um velho e delicioso samba de Chico Buarque, acho que bem do começo dos anos 70. Entre seus versos finais dizia: “Deus me deu perna comprida pra correr atrás da bola e fugir da polícia”. Curioso como o verso liga uma coisa à outra. Não diz “pra correr atrás de bola OU fugir da polícia”, mas “pra correr atrás da bola E fugir da polícia”, unindo assim bola e polícia numa única ação.
No tempo do Chico se jogava bola neste país, tínhamos orgulho disso, tínhamos heróis e ídolos. Muito antes da canção do Chico, nós, garotos dos anos 50, não saíamos dos irregulares campinhos e terrenos baldios na tentativa de imitar os craques imortais dos grandes times. Imitávamos até seus uniformes dentro das possibilidades da várzea, em campos que ocupavam toda a cidade. E descrever os uniformes dos grandes jogadores de futebol daquela época requer um tratado, talvez uma tese de doutorado – por que não? Afinal há tantas por aí.
O goleiro principalmente parecia um cavaleiro medieval. Quando entrava em campo, só faltava elmo, lança e viseira. Para proteger os joelhos usava joelheira, os calções nas laterais vinham com um enchimento que amortecia quedas. Igualmente para salva- guardar os cotovelos havia outro enchimento protetor, como também munhequeiras, cuja função o nome já insinua. Goleiro usava até tornozeleira, objeto certamente mais útil aos outros jogadores, sobretudo atacantes. A tor- nozeleira era um componente especial do uniforme. Quase todo jogador a usava, muitas vezes inclusive sobre as meias, bem visível a todos. Era um utilitário nobre que protegia tornozelos ilustres de gente que sabia jogar bola, fintava e ia pra cima do marcador, podendo levar patadas nos tornozelos, talvez fatais.
Pode ser que por isso, por sua utilidade manifesta, foi o último desses estranhos objetos a desaparecer. Não desapareceu de todo, presumo. Tem hoje a companhia das elegantes caneleiras que aí estão, protegendo jogadores que vibram ao ganhar do Haiti.
O fato é que os goleiros foram se despindo e hoje usam as mesmas proteções como qualquer outro jogador. Mas talvez ainda usem tornozeleiras, que sempre foram para mim objetos não só familiares, como veneráveis. Faziam parte do uniforme de quando éramos grandes e respeitados, faziam parte da nossa excelência. Ouso dizer que tornozeleiras eram objetos essenciais, tão respeitados como as chuteiras, por exemplo. E daí me vem a segunda parte dos versos do Partido Alto do Chico e a união que há entre futebol e polícia, hoje estabelecida justamente pelas tornozeleiras. É clara, pelo menos para mim, a ideia de que a tornozeleira passou dos que tem pernas compridas para correr atrás de bola para os que tem pernas compridas só pra fugir da polícia. A tornozeleira saiu do futebol para entrar em cana.
O objeto que protegia nossos melhores e mais importantes tornozelos, agora envolve o que temos de pior. Proponho que essa coleira horrorosa, acoplada agora ao corpo do que há de mais sinistro neste país, tenha seu nome trocado. Que a chamem de qualquer outra coisa, menos tornozeleira. Nosso futebol já está muito por baixo para merecer mais essa. Confesso que não sei como chamar o objeto que, ao contrário da velha tornozeleira que ajudava a liberar o craque para criar jogadas atrevidas, serve para obrigar o “indivíduo” a um lugar e evitar movimentos suspeitos e fugas. O que era arte agora é segurança pública.
Por isso o meu apelo: deixem as tornozeleiras do futebol em sua glória, achem outro nome para vigiar quem nunca deu, ao contrario dos craques, nenhuma parca alegria a nós outros, brasileiros. Termino com Chico e seus versos incrivelmente precisos do nosso destino: “Deus me deu perna comprida e muita malícia, pra correr atrás de bola e fugir da polícia. Um dia ainda sou notícia”.
Objeto que protegia nossos melhores tornozelos agora envolve o que temos de pior