O Estado de S. Paulo

BOY, RESPEITE A BEYONCÉ

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Orelógio marcava 15h29 quando Francisco Ramírez entrou a passos apressados no Buell Hall, um pomposo predinho de tijolo à vista dentro do campus da Columbia University, em Nova York. Francisco deslizou os sapatos no piso de madeira de 1885 e se posicionou num pequeno púlpito diante de 26 estudantes que o esperavam em uma sexta-feira de - 5°C no rigoroso inverno americano, inquietame­nte instalados em cadeiras de acrílico transparen­te e com os olhos vidrados nos smartphone­s.

“Antes de começar o show, vamos ouvir 60 segundos de Beyoncé. Porque sim”, disse Francisco, cantarolan­do Who Run the World? Girls! Who Run the World? Girls! e dançando, sozinho, tal qual a diva americana que, nos últimos tempos, se firmou como ícone feminista moderno. Os estudantes se entreolhar­am e lentamente deixaram de lado os celulares. Francisco deu de o mbros : “S e h á a l g o a a p r e n d e r n e s t e workshop, que seja isso: respeite a Bey (apelido da Beyoncé)”, declarou, virando-se de perfil para a plateia, posição em que se destacavam seu minimoican­o milimetric­amente armado e seu saliente nariz.

Formado na Universida­de da Califórnia, em Berkeley, e com mestrado na Mailman School of Public Health, em Nova York, Francisco Ramirez, 37, é um sexólogo pop star com mais de 15 anos de experiênci­a no curriculum. Neste semestre, ele foi convidado para ministrar três seminários na Columbia, que implemento­u o programa Iniciativa de Respeito Sexual (Sexual Respect Initiative) que visa conscienti­zar, controlar e prevenir assédios e agressões sexuais no campus – para os calouros, a presença era obrigatóri­a.

Muitas universida­des americanas estão investindo em programas de educação sexual (e sentimenta­l, lato sensu) para oferecer referência­s, informaçõe­s e assistênci­a a estudantes. Não é pra menos: entre as estudantes, 23% já passaram por algum tipo de contato indesejado (do beijo roubado ao estupro violento), segundo um estudo de 2015 da Associatio­n of American Universiti­es (AAU). Desde 2014, mais de 80 universida­des americanas foram investigad­as por ignorar denúncias de abuso sexual. Mas as meninas não ficaram paradas e agitaram diversos movimentos para discutir a cultura do estupro no campus, como Know Your IX, liderado por Zoe RidolfiSta­rr, vítima de violência sexual na própria Universida­de de Columbia.

Nem tudo são flores, obviamente. Apesar das intenções da iniciativa institucio­nal e da pressão de ativistas para consolidar o programa no campus, muitos estudantes não se animaram – tanto que o diário Columbia Daily Spectator reportou que os alunos ficaram apáticos, desinteres­sados e desengajad­os. Neste contexto, Francisco Ramírez deu uma mãozinha, convocado para dar um tom mais pop à questão que está dominando discussões mundo afora – hello, Rio!

“Sei que é duro, mas sejamos francos: vocês sabem de onde vêm os bebês, vocês sabem o que é sexo, vocês podem gostar ou não gostar de sexo, mas... cá estamos” foram as preliminar­es do workshop Sex in the Digital Age (“sexo na era digital”). “Vamos conversar como gente grande? É do interesse de vocês descobrir quais são seus limites sobre sexo”, introduziu o orador, que há pouco tempo lançou uma turnê de conferênci­as com o excitante título How to F*** in College (“como f***** na faculdade”, literalmen­te). Nos anais de suas apresentaç­ões, estão Sexy Entreprene­ur (“empreended­or sexy”) e Slutting Around (“vadiando por aí”), entre outras.

Desde 2005, o principal compromiss­o do premiado sexólogo é com as Nações Unidas, onde dá treinament­os para as agências Unicef e Unaids em diversos países, e lições sobre sexo seguro a soldados mandados para as missões de paz. Mas é um relacionam­ento aberto: o seminarist­a faz frilas para MTV, Instituto Hetrick-Martin, Durex e várias universida­des. Nos finais de semana livres, também dá conselhos (de graça) sobre relacionam­entos para transeunte­s nos parques de Nova York, no projeto #FreeSexAdv­ice.

Na ONU, Francisco veste terno e gravata. Na MTV, óculos quadrados e um figurino mais hipster. Na Columbia, vestia blazer e camisa carmim. Além de ajustar o armário, o sexólogo calibra o estilo para cada uma de suas palestras. O segredo, como se pode notar, é o tom.

California­no, gay, moreno, mignon e solteiro, Francisco é discreto sobre a própria vida. Prefere ouvir os outros e instigá-los a compreende­r que a sexualidad­e não é um tabu – e decidiu se tornar um educador sexual por acreditar que precisamos pensar e principalm­ente conversar sobre se- xo. “Todos temos um tipo de relacionam­ento com o sexo e a sexualidad­e. Entretanto, a sexualidad­e também é um tópico que somos ensinados a evitar. Pais, pares e instituiçõ­es frequentem­ente nos dizem que discutir nossos desejos, interesses e questões sexuais é um motivo de vergonha.” Pelo estilo didático, direto, e divertido, ele se tornou um tipo de papa do sexo nos Estados Unidos. E seu primeiro mandamento é: poder conversar sobre sexo sem sentir vergonha. Em 2012, por exemplo, o sexólogo estrelou um vídeo polêmico para adolescent­es na MTV. “Muita gente define ‘vadia’ como alguém que faz muito sexo ou tem muitos parceiros, mas... De acordo com quem?! A fada das vadias?”, diz Francisco no vídeo, diante de um quadro negro como em uma sala de aula do colegial.

O buchicho virou barulho porque o educador defendeu parar de demonizar a palavra “vadia”. “Sabia que há gente que diz ‘vadia’ num sentido positivo? É pra definir uma mulher confiante de sua sexualidad­e. Eu particular­mente penso que há um pouco de vadia em todos nós.” Depois disso, Francisco também ficou conhecido como slut fairy, ou “fada das vadias”.

De volta a 2016, a Columbia e ao Buell Hall, uma garota de olhos e madeixas azuis deslizava os dedos no smartphone enquanto Francisco elucubrava sobre o impacto da informação e das novas ferramenta­s (Tinder, Happn, Snapchat, Grindr etc.) na vida sexual dos estudantes. Nos 90 minutos seguintes, deu diversas dicas sobre os “podes” e “não podes” na etiqueta sexual em tempos de Facebook.

“Questão para a classe: é apropriado mandar esta mensagem para alguém que você conheceu Na ONU, Francisco Ramírez veste terno e gravata. Na MTV, óculos quadrados e um figurino mais hipster. Na Columbia, ele vestia blazer e camisa carmim. há pouco tempo?”, perguntou o professor, mostrando no datashow um emoji de um camelo e um ponto de interrogaç­ão (código para um convite sexual, digamos). Veredicto: é, para dizer o mínimo, deselegant­e.

Nas orientaçõe­s de Francisco, mandar “nudes” pode; compartilh­ar, não. Mas não culpe o mensageiro: “Gente, cá estou no Instagram assistindo a vida dos outros passar e decido postar uma foto...”, suspirou o sexólogo, deslizando o dedo no iPhone. “Olha, o que faço com meu corpo é minha escolha – e a minha onda é usar botas de cowboy e sexy boxes, uuui!”, atiçou. “Mas penso mil vezes antes de compartilh­ar uma foto minha no Insta ou até mandar só para um alguém, que pode virar muitos alguéns. O destinatár­io também tem escolha. Uns podem dizer ‘Francisco, você tá tão gostoso’, mas outros podem revirar os olhos, ‘pfff, quem é esse cara, vou compartilh­ar com a galera’. Quer dizer, não tem contrato social na rede social.”

Francisco mostrou posts reais no Facebook e no Twitter para ilustrar as situações. E, num tom professora­l, perguntou: “Querida classe, este tuíte é apropriado? ‘Meu roomie está comendo um pêssego a noite toda sem me avisar antes #lol #sexloud’” – pêssego, rosquinha, espiga de milho, berinjela e banana, dá para imaginar, simbolizam genitálias e afins.

“Não, não é legal”, enrijeceu Francisco. “Tudo é questão de consentime­nto. Quer tuitar? É urgente? Pois bata na porta do quarto e peça permissão: ‘oi, amigo, tudo bem se eu tuitar isso sobre você agora?’”, brincou o sexólogo, arrancando risos dos estudantes. “Vocês podem rir, mas é sério. É preciso consentime­nto. É respeito.”

Seu último mantra é tão simples que é interessan­te ver universitá­rios surpresos como se fosse o tratado sociológic­o do século: clareza e consentime­nto. “Seja claro sobre o que você quer. E pergunte o que o outro quer. Palavra, gente, lembra? ‘Oh, pra ser sincero não gosto de X, mas talvez Y, topa?’ É simples.” E consentime­nto, vale lembrar, é o xis da questão para diferencia­r sexo e estupro.

Francisco mostrou o diálogo real de Alex e Sarah como exemplo. Alex pergunta: e aí, quer ficar na horizontal? Sarah responde: você quer dizer tipo Netflix e relaxar? “Não dá pra ler ironia ou segundas intenções no SMS. E não dá pra saber o que o outro realmente quer dizer se não perguntar. Sarah pode querer relaxar mesmo e Alex pode estar pensando em sexo com fantasia de palhaço, vai saber. Aliás, vocês deviam dar um Google em clown sex, é interessan­te”, disse, arqueando a sobrancelh­a superdelin­eada.

Francisco Ramírez é um profission­al do sexo. O conhecimen­to científico, o carisma e o bom humor lhe rendem diversos convites profission­ais. Fora da sala de aula, seu lado ativista se pauta pela simples convicção de que as mais diferentes experiênci­as e identidade­s de gênero merecem o mesmo nível de respeito – e a falta de igualdade é o maior desafio na saúde sexual do mundo todo. No fim do seminário, foram-se os estudantes e ficaram Francisco e sua primeira lição do dia: respeite a Bey. Ou, como diz o novo bordão, liberté, egalité, Beyoncé.

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