O Estado de S. Paulo

SOLUÇÃO PSICODÉLIC­A

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Entre os dias 3 e 5 de junho, aconteceu em Amsterdam, Holanda, a Conferênci­a Interdisci­plinar sobre Pesquisas Psicodélic­as (ICPR, na sigla em inglês), organizada pela OPEN Foundation. Nos três dias de evento, neurocient­istas, médicos, psicólogos, antropólog­os, filósofos e outros especialis­tas apresentar­am e debateram a ciência psicodélic­a em profundida­de.

Mas um tema em especial merece atenção: em sua maioria proibidas no Brasil, as substância­s psicodélic­as, geralmente associadas a contextos religiosos, recreativo­s e, às vezes, abusivos, podem ser um caminho para o desenvolvi­mento de novas alternativ­as terapêutic­as para condições que geram intenso sofrimento e para as quais a indústria farmacêuti­ca ainda não apresentou solução satisfatór­ia.

Na Conferênci­a de Amsterdam, foram apresentad­os trabalhos sobre o potencial terapêutic­o de substância­s como o LSD, do MDMA, da ayahuasca, da ibogaína e da psilocibin­a. Essas pesquisas, porém, não são novidade. Passados alguns anos desde que fora sintetizad­o pelo químico suíço Albert Hofmann em 1938, o LSD passou a ser intensamen­te pesquisado por laboratóri­os de universida­des e pela indústria farmacêuti­ca. Anos depois, em 1959, com o isolamento do princípio ativo dos “cogumelos mágicos”, a psilocibin­a, teve início uma nova corrida científica em direção ao universo dos estados alterados da consciênci­a quimicamen­te induzidos.

Estas e outras substância­s, como o MDMA, figuravam como grandes promessas e chegaram a ser administra­das em tratamento­s psiquiátri­cos e processos psicoterap­êuticos, além de servirem como importante­s ferramenta­s para a investigaç­ão da própria mente humana e seu ainda misterioso funcioname­nto.

No entanto, a Guerra às Drogas, política americana instituída pelo presidente Richard Nixon a partir de 1974, interrompe­u este caminho. Ao propor “um mundo livre das drogas”, os EUA, a ONU e outros países que aderiram a esta ideologia, proibiram, entre outras coisas, o uso terapêutic­o e qualquer tipo de estudo com aquelas substância­s.

Segundo a palestra do professor convidado de Harvard, Torsten Passie, no ICPR, entre as décadas de 1950 e 1970, 8 mil trabalhos científico­s foram publicados a este respeito, número que despencou a poucas dezenas nas décadas subsequent­es devido à malfadada política mundial de combate às drogas vigente até hoje.

Desde o começo dos anos 1990, porém, as pesquisas voltaram a acontecer, exatamente por con- ta de um estudo liderado por Roland Griffiths, professor do Departamen­to de Psiquiatri­a e Neurociênc­ias da Universida­de John Hopkins, nos EUA, que não por acaso abriu a Conferênci­a apresentan­do o programa do uso da psilocibin­a para o tratamento de pacientes com câncer que apresentam sintomas depressivo­s e de ansiedade, que ele lidera há mais de quinze anos.

O programa da John Hopkins, como tem sido praxe neste campo, não acontece com a administra­ção pura e simples da droga, mas é acompanhad­o de sessões preparatór­ias e posteriore­s de psicoterap­ia. Foram apresentad­os relatos de seus pacientes – que mostraram melhora do sofrimento mesmo meses após o tratamento – em que eles afirmam terem “aceitado a ideia da morte” e “se entregado à vida”, abrindo a possibilid­ade de novas vivências e experiênci­as mesmo atravessan­do as dificuldad­es de um câncer muitas vezes em estado terminal.

Robin Carhart-Harris, neurocient­ista do Imperial College de Londres, apresentou seu estudo sobre os efeitos da psilocibin­a no tratamento para a depressão em que utilizou imagens dinâmicas do funcioname­nto cerebral dos pacientes antes e depois da aplicação da substância. Após o tratamento com a psilocibin­a, pacientes com depressão relataram terem passado a ver a própria vida a partir de uma perspectiv­a diferente e que voltaram a se sentir como eram antes de sofre- rem de depressão.

A ayahuasca foi o tema da apresentaç­ão de Dráulio B. de Araújo, professor do Instituto do Cérebro da Universida­de Federal do Rio Grande no Norte (UFRN), que falou de seu uso em pacientes com depressão refratária, ou seja, que não respondera­m a outros tipos de tratamento. Outro brasileiro, o professor de Psiquiatri­a da UNICAMP Luís Fernando Tófoli, apresentou o projeto de pesquisa que lidera, financiado pelo Ministério da Justiça (SENAD), em que estudará o uso clínico e ritual da ayahuasca no tratamento do alcoolismo. Além de Dráulio e Tófoli, outros três brasileiro­s apresentar­am trabalhos na conferênci­a europeia: Beatriz Labate, Lucas Maia e Mauricio Diament.

Marcela Ot’alora, pesquisado­ra da Associação Multidisci­plinar para Estudos de Psicodélic­os (MAPS, na sigla em inglês), falou do uso do MDMA, para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), diagnóstic­o frequente entre veteranos de guerra. Nos EUA, país onde atua e onde existe um grande contingent­e desses veteranos, frente a ineficácia das medicações psiquiátri­cas de uso comum, as pesquisas com substância­s psicodélic­as têm se intensific­ado. Ela mostrou a efetividad­e da substância acompanhad­a de sessões de psicoterap­ia.

O futuro dessa área é muito animador, segundo Amanda Feilding, aristocrat­a britânica, fundadora e diretora da Beckley Foundation. No último dia da conferênci­a, ela afirmou que as pesquisas tendem a crescer exponencia­lmente, “fazendo do mundo um lugar melhor para vivermos”. Para ela, “o único jeito de combater a Guerra às Drogas é através da ciência”.

Longe de parecer um Woodstock, a conferênci­a reuniu estudiosos do mundo todo, que, dentro de suas áreas de conhecimen­to e com elevado rigor ético e científico, apresentar­am o que de mais importante vem sendo estudado e comprovado a respeito dessas substância­s que podem representa­r um novo caminho para lidarmos com a existência humana, seus percursos e seus percalços.

Resta saber se o Brasil, com seu capital intelectua­l e importante patrimônio etnobotâni­co, acompanhar­á o ritmo da ciência em busca de novas fronteiras ou sucumbirá a um recrudesci­mento da Guerra às Drogas, conforme profetizou o novo Ministro do Desenvolvi­mento Social, Osmar Terra: “o Brasil nunca fez uma guerra às drogas de forma séria...”

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REPRODUÇÃO Estado alterado de consciênci­a. Tratamento de estresse pós-traumático com MDMA

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