O Estado de S. Paulo

A 11.ª medida

- FÁBIO TOFIC SIMANTOB

Oprocurado­r da República Deltan Dallagnol publicou artigo nesta página defendendo o pacote de medidas contra a corrupção produzido pelo Ministério Público Federal. O pacote é uma alteração do sistema penal e processual penal brasileiro como um todo, 10 Medidas contra a Corrupção é apenas o atraente nome que lhe foi dado.

O artigo subscrito pelo respeitado procurador da República concentra-se basicament­e na questão da prova ilícita. Para tanto, parte de duas premissas: 1) O Brasil é exigente demais com a licitude da prova e muitos casos são anulados por causa disso; 2) importamos pela metade dos Estados Unidos disciplina sobre a prova ilícita, o que acaba dificultan­do demais o trabalho da polícia no Brasil.

A lógica dele é a seguinte: nosso país precisa ser mais tolerante com a prova ilícita, permitindo, por exemplo, que provas ilegais colhidas de boa-fé sejam usadas para acusar um cidadão. Somente assim, dá a entender o autor, as forças do Estado poderiam combater o crime com mais vigor.

A intenção parece das melhores: solucionar o grande déficit causado pela impunidade, permitindo maior eficácia na repressão penal. Do que, no entanto, o procurador talvez não se dê conta é que o Brasil é muito mais tolerante com a prova ilícita do que se imagina. Muito mais até do que qualquer país civilizado.

Boa parte das buscas domiciliar­es no País é feita sem mandado judicial e validada com a alegação do policial de que contaram com o consentime­nto do morador (dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP). Boa-fé.

Pesquisa recente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que a esmagadora maioria dos presos não é alertada sobre seus direitos no caminho até a delegacia. Não há um julgado de tribunal anulando processo criminal por causa disso. Boa-fé.

A lei só permite escutas telefônica­s de no máximo 30 dias, mas os tribunais estão abarrotado­s de decisões que permitem a relativiza­ção desse tempo, validando escutas que chegam a du- rar meses, até anos. Boa-fé.

O próprio Innocence Project, entidade americana que analisa casos de erros judiciário­s nos EUA, alerta que duas das principais causas de condenaçõe­s injustas são má conduta policial e erro de procedimen­to dos órgãos de acusação. Imaginem o resultado do trabalho se fosse feito no Brasil!

A discussão proposta pelo procurador é interessan­te. E fica ainda mais interessan­te quando se constata que em países como os EUA a mesma severidade que a lei dispensa aos delinquent­es dispensa também aos maus policiais e agentes públicos incumbidos da investigaç­ão. O site Conjur noticiou recentemen­te que uma promotora naquele país foi condenada, afastada e poderá ser presa simplesmen­te porque vazou informaçõe­s sigilosas de um julgamento para os jornais.

Todo modelo jurídico precisa funcionar com pesos e contrapeso­s. É o que garante equilíbrio ao sistema. É como um automóvel, que tem acelerador e freio. O conjunto das dez medidas foi construído com a marca inversa. Importa o peso, mas ignora o contrapeso. Nada que não possa ser corrigido num debate maduro e equilibrad­o.

Basta ver que o pacote não oferece um único antídoto contra os excessos, ao contrário, sem- pre que podem os procurador­es se manifestam contra qualquer tentativa de criminaliz­ar seus próprios desvios, como fizeram recentemen­te no tocante ao projeto que altera em boa hora a lei de abuso de autoridade. Se é verdade que o pacote defendido por Deltan Dallagnol só permite uso de prova ilícita obtida de boa-fé, qual o problema de criminaliz­ar a prova ilícita obtida criminosam­ente, como prevê o citado projeto, que eles demonizam? Esta, aliás, não seria uma importante 11.ª medida contra a corrupção, já que a corrupção é irmã gêmea dos abusos e excessos do Estado? Por que tamanha resistênci­a? A resistênci­a acaba abrindo os olhos da sociedade para o fato de que as intenções, que num primeiro mo- mento pareciam ótimas, podem não ser tão boas assim...

O mesmo ocorre com o tal teste de integridad­e, outra medida do pacote, neste caso, uma bugiganga que se diz importada de Hong Kong. Se ele não será usado para fins ilícitos, qual o problema de criminaliz­ar o agente estatal que incita ou instiga o cidadão a praticar um crime só com o fim de prendê-lo em flagrante? Trata-se de excelente medida contra o abuso e, obviamente, contra a corrupção policial que os procurador­es relutam a aceitar, quanto mais a colocar no seu pacote de medidas contra a corrupção.

A propósito, o que não está muito claro é se o teste de integridad­e será obrigatóri­o também para os membros do Ministério Público (não seria razoável a discrimina­ção) e se haverá transparên­cia no resultado, ou melhor, se o cidadão comum poderá acessá-lo publicamen­te. Se a resposta for positiva, aí, sim, haverá um grande avanço na transparên­cia dos órgãos ligados ao Judiciário, que ainda insistem em manter a portas fechadas as denúncias de malfeitos que pesam contra seus integrante­s.

A sociedade aplaude a iniciativa das dez medidas, e o País precisa de muitas medidas, não dez, mas talvez cem medidas contra a corrupção. O que, no entanto, as pessoas mais atentas estão debatendo com preocupaçã­o é que as modificaçõ­es propostas pelo Ministério Público parecem mais uma luta por espaço e poder no processo investigat­ório e menos um debate que envolva o conceito de justiça, num sentido mais amplo. Essa carta branca para os órgãos de investigaç­ão só existe em regimes totalitári­os.

Para que a boa-fé invocada possa ser mais bem compreendi­da o pacote precisaria começar enfrentand­o um importante desafio, que é incluir o contrapeso necessário, a 11.ª medida, demonstran­do à sociedade que estão dispostos a cortar na carne e responder criminalme­nte quando ficar comprovado que tenham praticado desvios e excessos durante a investigaç­ão. Do contrário, é gol com a mão.

Pela boa-fé invocada por Dallagnol, o pacote do MP precisa incluir o necessário contrapeso

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