O Estado de S. Paulo

Com Ruth e Lourdes, na Bienal do Livro

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No dia 26 de agosto pela manhã, Maria Bethânia, levada pelo Sesc (Danilo Santos de Miranda é sempre Danilo), fez um belíssimo show, As Palavras, abrindo a 24.ª Bienal do Livro de São Paulo. Um espetáculo que muitos conheciam e que se ajustou perfeitame­nte nesta Bienal.

Bethânia desfiou poemas e canções de autores que fizeram/fazem parte de sua formação, como Guimarães Rosa, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Caetano Veloso, Cecília Meireles, Sophia de Mello Breyner Andersen, padre Antonio Vieira e tantos outros, entremeado­s por trechos de canções brasileira­s e portuguesa­s, como ABC do Sertão (Luiz Gonzaga), Romaria (Renato Teixeira), Último Pau de Arara, Estranha Forma de Vida (Amália Rodrigues), Marinheiro Só, Dança da Solidão (Paulinho da Viola). A cantora, das raras divas de nossa música hoje, encerrou, proclamand­o com orgulho: “Sou esta Maricotinh­a que estudou e se formou pela escola pública”. Estava dado o recado. Foi um aplauso só, prolongado, de pé, por mil convidados especiais, autoridade­s, professore­s, escritores, editores, livreiros, jornalista­s, formadores de opinião. Onde está a escola pública? Não fosse pelo evento que é o que é, a Bienal teria já valido a pena por essa manifestaç­ão. Na plateia, o ministro da Educação se encolheu calado, calado permaneceu, não subiu ao palco para louvar a Bienal.

Nesta sexta-feira, completo 80 anos, um mês e dois dias. Permitamme flutuar em torno de acontecime­ntos recentes que mexeram com minha vida. Tem um batalhão por aí completand­o 80 anos e a toda. Luis Fernando Verissimo é um, daqui a pouco Jô Soares virá se juntar a nós, o Ziraldo caminhou alguns anos à nossa frente, bem como o Zuenir Ventura. Mas, no domingo, no QG da Câmara Brasileira do Livro, na 24.ª Bienal, Ziraldo me chamou de lado: “Que tal nos juntarmos e montarmos um show, peça teatral, o que for, e irmos para o palco em uma conversaçã­o maluca alto-as- tral, em torno de nossa idade? Pode ser divertido, estamos com todo o gás. Afinal, cada um viveu muitas histórias ligadas a este país”. Completou: “E não seria o máximo se Fernanda Montenegro aceitasse também?”.

Estar com todo o gás. Isso é verdade. Como não estar com todo gás quando, na véspera de meu aniversári­o, a Academia Brasileira de Letras me entregou o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra? Já falei disso, falo de novo, reparto alegrias. O que vocês não sabem é que esse prêmio teve um impacto forte na vida de outra pessoa. Quantos, como a professora Ruth Segnini, podem ter, aos 89 anos, uma resposta à questão que ao longo da vida a intrigou? Ao falar aqui de Ruth, falo também de Lourdes Prada, falo dos professore­s que, por décadas, ensinaram e ensinam na escola pública.

Também, como Bethânia, saí da escola pública. Fiz o primário (fundamenta­l) em duas escolas privadas que me deram bolsa, filho de ferroviári­o remediado que era. Ginásio e científico em colégio estadual gratuito. Ruth Segnini me ensinou a ler e a escrever, disciplina­dora, exigente. Depois, nos perdemos no tempo e nos reencontra­mos por meio de amigos comuns e de livros como O Menino Que Não Teve Medo do Medo, O Menino Que Vendia Palavras e O Menino Que Perguntava. Passamos a nos ver em Araraquara e eu continuava a ser para ela “o menino”, ainda que já estivesse com 60, 70, quase 80 anos.

Oito dias depois de receber o prê- mio, voltei à Academia para fazer uma palestra sobre festivais literários brasileiro­s. Desta vez, levava nas mãos um documento que entreguei ao presidente Domício Proença Filho. A cópia do bilhete de Ruth, que me chegou de Araraquara. Ela diz: “Fiquei feliz por poder cumpriment­á-lo pelo seu prêmio. Sabe por quê? Porque estou viva e pude ter a alegria de ver brilhar um ex-aluno que sempre se lembrou de mim. Muitas vezes, tive dúvidas, incertezas duras, pensando: será que escolhi o ofício certo? Não havia como saber. Você me deu a resposta. Você é um prêmio do meu projeto de vida, que era educar, formando seres humanos. Orgulho-me de você, parabéns, Ruth Segnini”.

Li o mesmo bilhete na minha fala de sábado passado no Salão de Ideias, na 24.ª Bienal. Tem mais, Ruth. Sei que você não pôde vir a esse acontecime­nto. Viesse, ao entrar, daria com um auditório, destinado aos grandes debates. O espaço leva meu nome. Valeram para mim estes anos todos, os 44 livros. De qualquer modo, nele, várias vezes, entrei me imaginando ao seu lado e junto a Lourdes Prada.

Na abertura da mostra, Bethânia desfiou poemas e canções que fazem parte de sua formação

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