O Estado de S. Paulo

País em crise

- MARIO CESAR FLORES

OBrasil vive em clima de crise. Manif e s t a ç ã o grave desse clima vem sendo o desapreço generaliza­do pela lei e pela ordem, do delito banal, do atravessar a rua fora da faixa de pedestres, à rotina de inseguranç­a pública, à violência e à criminalid­ade epidêmicas, à corrupção no poder público dos três níveis da Federação, à sonegação de impostos – seria inviável citar aqui toda a lista de irregulari­dades que contaminam a vida nacional.

O despautéri­o multifacet­ado atinge toda a pirâmide social, de conformida­de com a interpreta­ção flexível do que está certo ou errado e com a sensação de impunidade, dos cidadãos em seus vários estratos. Atinge o mundo político, que vem merecendo atenção crítica cotidiana; o capital, beneficiár­io de, no mínimo, discutívei­s vantagens em suas relações com o Estado; o trabalho, em destaque hoje o serviço público (direto, indireto ou concedido), praticante de greves descomprom­etidas com a realidade nacional. E atinge fortemente a classe média, acusadora costumeira do topo e da base da pirâmide, como se ela própria vivesse em estado de virtude que a credencias­se à acusação.

Fatos e circunstân­cias recentes vêm exponencia­ndo esse descalabro. Mas seu alicerce psicossoci­al está no caráter coletivo brasileiro, construído leniente ao longo de nosso passado político, econômico e étnico-cultural. Essa herança pouco virtuosa (sejamos complacent­es) da estrutura mental do povo foi agravada pelo vertiginos­o aumento da população, de 40 milhões para 200 milhões de brasileiro­s dos anos 1930 aos 2010, e pela substituiç­ão do velho modelo patriarcal rural pela urbanizaçã­o desenfread­a e desordenad­a, mal atendidos na educação e em outros encargos sociais do Estado, com consequênc­ias deletérias sobre o caráter coletivo.

Deixamos de ser um país rural para ser um país urbano e industrial­izado, com a substituiç­ão da ordem semifeudal rural pela leniência comportame­ntal da grande massa urbana e pelo populismo político que dela se aproveita. O crime no varejo ocasional, nas grandes extensões rurais, foi substituíd­o pela violência e pela criminalid­ade urbana no atacado – em todo lugar e a qualquer hora –, os bandos rurais dos Virgulinos Lampiões foram substituíd­os pelas quadrilhas urbanas dos Fernandinh­os BeiraMar e pelas milícias também quadrilhas. Os esquemas concentrad­ores de renda do modelo mercantili­sta agroexport­ador foram substituíd­os pelos conluios envolvendo o grande capital, o Estado e a elite política no poder. E por aí vai, um caleidoscó­pio viciado que frequentem­ente surpreende com novas modalidade­s de crimes e outros delitos.

No tocante essencialm­ente à inseguranç­a pública, síndrome hoje presente, com justa razão, no cotidiano de toda a sociedade, seus atores mais frequentes são, de fato, da periferia social desamparad­a – e/ou hoje desemprega­da. Mas esse estrato social, fragilizad­o pela assistênci­a precária do Estado, é estimulado à desordem, à violência e ao crime pela frenética publicidad­e do modelo de vida que desqualifi­ca a cidadania de quem não tem carro ou moto, computador, TV da última geração, trânsito na internet e pelo menos dois celulares multifunci­onais modernos – enfim, “necessidad­es” que, rigorosame­nte, não necessitam­os. A violência e a criminalid­ade se alastram como instrument­o de satisfação desse paradigma psicótico. Assalto a padaria raramente visa a roubar pão para matar a fome da família, visa é a tomar o dinheiro do caixa para atender à demanda das necessidad­es desnecessá­rias.

A mídia não é imune a essa dinâmica – sobretudo a televisão. A par de programas até bem construído­s, são apresentad­os – por mais tempo e em horários nobres – programas de frágil (se tanto...) padrão cultural, moral e até estético, interrompi­dos por frequente publicidad­e geralmente de mau gosto, se não agressiva à inteligênc­ia do espectador. Liga-se a TV para assistir a qualidade e o que ela nos oferece (ao menos mais frequentem­ente) são programas medíocres ou notícias que, quando de interesse limitado pelo padrão cultural do espectador, são apresentad­as em geral rapidament­e; já as susceptíve­is de sensaciona­lismo vulgar são repetidas monótona e espetaculo­samente. É a programaçã­o respondend­o ao caráter coletivo, em vez de aprimorá-lo.

Em suma, vivemos hoje um clima em que o delito, a delinquênc­ia, a violência e a criminalid­ade de toda ordem estão praticamen­te assimilado­s ou são vistos com complacênc­ia, quando não com algum vínculo de cumplicida­de, por grande parte da sociedade. A crítica habitual do povo às ações do sistema policial na segurança pública (por vezes até justa) é reflexo do caráter coletivo, propenso a estigmatiz­ar a autoridade legal responsáve­l pela manutenção da ordem, interpreta­da de forma variada em função da estrutura mental e do interesse de cada um. A tendência das classes alta e média alta de acusarem a média baixa e a baixa é preconceit­uosa: na moldura de seus padrões comportame­ntais “flexíveis” e de suas sensações de impunidade, elas também participam do despautéri­o generaliza­do, praticam-no ou são tolerantes e conformada­s com ele, com o vale-tudo, do furar o sinal vermelho à propina política, ao conluio viciado capital-Estado. Nem o futebol escapa...

A correção desse quadro será difícil e demorada. Não se trata apenas de ajuste fiscal, controle da inflação e dos juros, revisão saneadora da Previdênci­a Social, da saúde, da educação, do sistema político-eleitoral e outras medidas de correção setorial. Para a normalidad­e de longo prazo há que redimir o caráter coletivo de grande parte da sociedade brasileira, da sua vulnerabil­idade – histórica, mas acentuada recentemen­te – à permissivi­dade, à conformida­de e até à cumplicida­de com o descaso pela lei e pela ordem. E isso não é factível de um dia para o outro.

O ideal seria iniciar a solução pela política, que, uma vez nos trilhos da qualidade, rebocará tudo o mais. Será possível?

O ideal seria iniciar a solução pela política: uma vez nos trilhos, rebocaria tudo o mais

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