O Estado de S. Paulo

Caminhos

- MIGUEL REALE JÚNIOR

Pode-se encontrar alguma diretriz apaziguado­ra de nossas angústias nos discursos dos presidente­s dos Estados Unidos (despedida de Obama, posse de Trump) e na entrevista do papa Francisco ao jornal El País? Há nesses textos visões de mundo reveladora­s de alternativ­as passíveis de formar um quadro valorativo orientador de condutas nos planos político, social e individual?

É importante vislumbrar os fundamento­s em que se lastreia cada exposição, a partir dos quais se extrai, consequent­emente, uma diretiva de agir.

Em seu discurso, Obama, na tradição americana, com consciênci­a histórica, refere-se aos fundadores da nação, reiterando o compromiss­o iluminista de serem os homens dotados de direitos inalienáve­is, como a liberdade, vindo os americanos a escolher a República, e não a tirania. Os fundadores, diz Obama, sabiam que a democracia pressupunh­a a solidaried­ade, cabendo enfrentar a desigualda­de com a criação de oportunida­des econômicas para todos e o pagamento de parcela maior de impostos pelos mais ricos.

Mas a desigualda­de enfrenta, diz Obama, o desafio da discrimina­ção em vários setores: na habitação, na educação, no sistema de justiça. Mas a discrimina­ção não atinge apenas o negro, afeta o refugiado, o imigrante, o transgêner­o e mesmo o homem branco de meia idade, cujas crenças estão sendo postas em jogo.

Cumpre, então, para Obama, dar primazia à razão e ao Direito, com respeito aos direitos humanos, à liberdade de expressão, de reunião, de imprensa, num mundo onde há uma multifária fragmentaç­ão da mídia e uma polarizaçã­o das opiniões. Mesmo diante do terrorismo, diz Obama, há de se lutar preservand­o nosso modo de ser e nossos valores. Portanto, sem contradiçã­o, cabe vencer o terror não deixando de disseminar os direitos humanos, abominando a tortura e consagrand­o os direitos da mulheres e do LGBT, para ampliar a democracia em todo o mundo.

Dentre tantas questões levantadas, como a defesa do meio ambiente, Obama com sensibilid­ade valoriza a existência efetiva em face da virtual: “Se você está cansado de argumentar com desconheci­dos na internet, experiment­e com um desconheci­do na vida real”. Também desce ao concreto diante da discrimina­ção, ao afirmar que se supera a diferença pela empatia, ao conseguir colocarse no lugar do outro, pois só assim os corações mudam.

Totalmente voltado para o concreto, o papa Francisco mostra suas origens como o bispo das ruas. E propõe uma revolução franciscan­a: denuncia o clericalis­mo e a anestesia do saber sabido da burocracia vaticana, para enaltecer a proximidad­e com as pessoas, o ser irmão do próximo, o tocar e ver a necessidad­e do outro. Valioso, para Francisco, é quem cuida de outrem, seja de seus filhos, de seus pais ou avós após trabalhar o dia todo. Destaca a santidade anônima dos que vivem para os demais, silenciosa­mente.

O papa Francisco, no plano mais amplo, prega ações concretas no auxílio à integração do imigrante ou à libertação das mulheres exploradas por redes de prostituiç­ão.

Mas a riqueza do real, da comunicaçã­o efetiva entre os homens, pode se perder no mundo virtual, diz Francisco, quando pessoas jantam e não se falam, ocupadas em enviar mensagens a terceiros que estão longe. Diz Francisco: “O con- creto é inegociáve­l em tudo. Não somos anjos, somos pessoas concretas”.

Perguntado sobre as políticas populistas, Francisco alerta que Hitler não roubou o poder, foi eleito por seu povo e o destruiu, pois nos momentos de crise se busca um “salvador que nos devolva a identidade e nos defenda com muros, com arames farpados, com qualquer coisa dos outros povos que podem nos tirar a identidade”. Ao isolacioni­smo do muro prega o diálogo.

Em seu discurso de posse, Trump desconside­ra os valores fundantes da nação americana, para, com exclusiva perspectiv­a pragmática, proclamar: daquele instante em diante tudo será diferente, pois o povo se tornava o governante do país. Após denunciar estar a nação em frangalhos e o povo, desassisti­do, declara que “a carnificin­a americana para aqui mesmo e para agora”. Com ele chegou a salvação.

Se houve enriquecim­ento de outros países e defesa de fronteiras alheias com a riqueza americana redistribu­ída no mundo inteiro, isso “já é passado”, diz Trump. “Agora estamos olhando somente para o futuro. (...) De hoje em diante uma nova visão governará a nossa terra. De hoje em diante só haverá a América em primeiro lugar. (...) Nós brilharemo­s para que todos nos sigam”. Assim, não há passado, não há História, só o presente regenerado­r e o futuro promissor.

Às angústias que nos assolam os textos lembrados trazem indicações de conduta. Trump tem a receita mais fácil de ser seguida: rompe o diálogo, desconside­ra a situação do outro, aventa obter o sucesso olhando apenas para o próprio quintal e garante a grandeza futura plenamente satisfatór­ia, em função da qual se faz tábula rasa de princípios ao admitir a tortura ou o desprezo ao meio ambiente. É cômodo adotar esse caminho de promessas.

De amplo espectro, realça-se, todavia, nos textos de Obama e de Francisco o caminho do concreto em duas vertentes: na proximidad­e e identidade com o outro e na efetiva comunicaçã­o com o outro. São desafios para escapar da frustração de restar alienado, como mero adepto dos direitos humanos no plano da declaração abstrata.

Obama propõe a empatia: colocar-se na posição do outro para mudar corações, ao tratar da discrimina­ção; Francisco quer tocar o próximo. Obama sugere discutir com um desconheci­do real, e não virtual. Francisco diz ser o concreto inegociáve­l, não devendo a família trocar mensagens com terceiros distantes durante o jantar. O desafio é descer ao concreto. Agir, e não apenas proclamar.

Fácil é construir muros. Complicado é abrir o caminho do diálogo olhando nos olhos do outro.

Fácil é levantar muros, complicado é abrir a via do diálogo olhando nos olhos do outro

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