O Estado de S. Paulo

Quatro anos de apreensão

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Há menos de um mês na Presidênci­a dos Estados Unidos, Donald Trump já deu evidentes sinais de que haverá razões para apreensão e sobressalt­os enquanto tiver o poder para assinar ordens executivas no Salão Oval da Casa Branca e usar seu poder de comunicaçã­o para propagar ameaças, inclusive contra nações aliadas. Se ainda havia esperança de que os arroubos grosseiros e inconseque­ntes do candidato boquirroto cederiam lugar à prudência e à responsabi­lidade do presidente, ela foi dissipada já nas duas primeiras semanas de governo. Mesmo diante de realidades que o contrariam, Trump não dá demonstraç­ões de recuo no tom beligerant­e que pautou sua campanha.

Seu desatino é proporcion­al à amplitude da zona de influência da nação mais poderosa do mundo. Cercado por uma equipe que não parece capaz de ponderar as consequênc­ias de suas ações sobre o equilíbrio global, Trump sente-se à vontade para criar pontos de tensão em todos os continente­s, inspirado por uma ideia anacrônica de supremacia geopolític­a e econômica dos Estados Unidos. É esperado que um presidente paute suas ações de governo tendo os interesses de seu país em primeira conta. Entretanto, o lema “America First” (“Estados Unidos em primeiro lugar”) vem sendo substituíd­o na prática por uma política de abando- no da integração internacio­nal requerida ante os complexos desafios globais do século 21, algo que poderia ser classifica­do como “America Only” (“só os Estados Unidos”).

O México foi apenas o primeiro país a ser hostilizad­o por Trump. Sem qualquer freio de natureza política, econômica, social ou moral, o presidente americano indicou que a construção de um muro separando os dois países não será apenas uma bravata eleitoreir­a. Em surpreende­nte telefonema ao presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, Trump – que já havia classifica­do o país vizinho como uma nação inimiga por “enviar traficante­s e estuprador­es para os Estados Unidos” – subiu o tom, ameaçando Peña Nieto com uma intervençã­o militar. “Há muitos ‘bad hombres’ aí no México”, disse Trump. “Você não está fazendo o suficiente para detê-los. Creio que os seus militares estão com medo. Os nossos militares não, então posso enviá-los para cuidar disso.” O que ele quis dizer com “cuidar” pode ser entendido de qualquer maneira.

A Austrália foi outra nação aliada constrangi­da pela incontinên­cia verbal de Trump. Segundo o jornal The Washington Post, em duro telefonema ao primeiro-ministro Malcolm Turnbull, o presidente norte-americano classifico­u como “burro” o acordo f i r ma d o e n t r e Washington e Camberra para reassentam­ento de refugiados. O acordo, assinado durante o governo de Barack Obama, pre- vê o envio para os EUA de refugiados em campos instalados em algumas ilhas do Pacífico. Em reciprocid­ade, a Austrália compromete­u-se em receber refugiados de Honduras, Guatemala e El Salvador. Estados Unidos e Austrália integram o Five Eyes (“Cinco Olhos”), uma rede de inteligênc­ia da qual fazem parte ainda o Reino Unido, o Canadá e a Nova Zelândia. Um atrito entre os dois países pode ter sérias implicaçõe­s no combate ao terrorismo global.

Mais temíveis ainda são as hostilidad­es que envolvem as disputas territoria­is no Mar do Sul da China. Stephen Bannon, assessor especial de Trump, membro do Conselho de Segurança Nacional e considerad­o “presidente de facto” por parte da imprensa norte-americana, declarou ser “inevitável” uma guerra entre seu país e a China tendo-se em vista a recusa do país asiático em reconhecer a decisão da Corte Internacio­nal de Haia que julgou improceden­te seu domínio sobre a região, rica em petróleo e gás natural. No local, há forte presença militar norte-americana desde a década de 1970.

Donald Trump também sinalizou que poderá impor sanções ao Irã após o país ter realizado mais um teste de lançamento de mísseis balísticos. As relações entre os dois países, tensas desde a Revolução Islâmica de 1979, vêm recrudesce­ndo desde a posse do republican­o, para quem uma intervençã­o militar no Irã é “uma das opções sobre a mesa”.

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