O Estado de S. Paulo

Nova frente no câncer de pâncreas

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Ocâncer nos apavora porque é difícil de curar. Por trás dessa dificuldad­e está um fato simples. As células cancerosas, por serem derivadas de nossas próprias células, são muito semelhante­s às saudáveis. Por esse motivo é difícil achar drogas que matem as cancerosas sem matar as saudáveis.

Quanto maior a diferença entre o ser vivo que desejamos matar e nossas células mais fácil descobrir medicament­os capazes de matar o inimigo sem nos matar. É por isso que os antibiótic­os, que matam bactérias, são mais eficientes e fáceis de desenvolve­r que os quimioterá­picos. A história da quimiotera­pia pode ser descrita como uma busca desesperad­a por diferenças entre células tumorais e saudáveis. Encontrada uma diferença, os cientistas correm para desenvolve­r compostos que matem o tumor sem matar o paciente.

O interessan­te é que o mecanismo que leva ao aparecimen­to das células cancerosas por si só gera as diferenças que permitem o desenvolvi­mento dos medicament­os. Sabemos que uma sequência de mudanças genéticas vai aos poucos transforma­ndo uma célula normal em uma célula tumoral. Centenas dessas mudanças genéticas, mutações, rearranjos e perdas de genes já foram descritas.

Cada tumor, em cada paciente, surge e se torna mais invasivo à medida que suas células vão acumulando um subconjunt­o dessa coleção de mudanças genéticas. À medida que acumulam mudanças, células tumorais ficam mais e mais diferentes das normais. E possuem mais alvos para os quais podemos desenvolve­r estratégia­s de ata- que. A novidade é a descoberta de uma estratégia que explora o surgimento dessas diferenças.

Os tumores de pâncreas que se originam de células dos dutos são extremamen­te agressivos. Depois de acumular mutações, as células se tornam mais agressivas quando perdem um gene chamado SMAD4. Esse é um gene supressor de tumor. Nas células normais, ele impede a formação de tumores. Quando ambas as cópias desse gene são perdidas, os tumores ficam mais agressivos. Essa perda ocorre quando o pedaço de DNA em que se encontra o gene é apagado do genoma das células tumorais.

Mas será que, quando esse pedaço de DNA é perdido, somente o gene SMAD4 desaparece ou os genes que estão logo do lado do gene SMAD4 também são perdidos? Como já conhecemos toda a sequência de DNA genoma humano, foi fácil para os cientistas descobrir que ao lado do gene SMAD4 reside um gene muito importante para a sobrevivên­cia de todos os seres vivos, o que codifica a enzima málica (ME2) que converte piruvato em maleato. Essa conversão é essencial para a produção de energia nas células. Sem ela, os seres vivos morrem.

Analisando células de 294 tumores de pâncreas, os cientistas descobrira­m que em um terço deles não tinha os genes SMD4. Entre os que haviam perdido esse gene, 64% haviam perdido também o ME2. Sem esse gene a célula deveria estar morta. Mas ela não morre. E a razão é que existe uma outra versão do gene da enzima málica na célula, que é bem diferente, menos eficiente, e se chama ME3. Nessas células tumorais a ME3 passa a funcionar em maior velocidade e substitui a atividade da ME2 que foi perdida. O resultado é que as células que antes possuíam dois genes capazes de exercer a função (ME2 e ME3), agora só tem um (ME3). Quando os cientistas removeram o gene ME3 dessas células tumorais, constatara­m que a células morriam, pois ficavam incapazes de transforma­r piruvato em maleato.

Foi a partir dessa descoberta que surgiu a ideia de um novo quimioterá­pico. Como a enzima ME2 e ME3 são muito diferentes, a ideia é produzir uma molécula que seja um inibidor específico da ME3, bloqueando seu funcioname­nto. Imagine primeiro o que acontece quando você dá esse remédio para uma pessoa normal. O gene ME3 é totalmente bloqueado, mas não aconte- ce nada com a pessoa, pois o gene ME2, que é mais importante, continua ativo.

Agora imagine quando essa droga for administra­da para um paciente com câncer de pâncreas, no qual o tumor tiver perdido o gene ME2. Nada vai ocorrer nas células normais, pois a inibição do ME3 causada pelo remédio é compensada pela atividade do gene ME2 que está em todas as células normais. Já as células do tumor, que só tem ME3, vão morrer pois não serão mais capazes de converter piruvato em maleato. Pronto, as células normais sobrevivem e as tumorais morrem. Se tudo der certo, a pessoa será curada.

Essa descoberta abre o caminho para o desenvolvi­mento de um novo quimioterá­pico. Mas o interessan­te é que esse exemplo nos ensina como os cientistas descobrem diferenças entre células tumorais e sadias e usam essas descoberta­s para desenvolve­r os novos medicament­os.

Cientistas correm para desenvolve­r compostos que matem tumor. E não o paciente

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