O Estado de S. Paulo

Lorde lacustre

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Para Millôr, ele era “o lorde do Leblon”, o único inglês daquele bairro da Zona Sul carioca que, acrescento eu, não fumava cachimbo e preferia a New Yorker à secular revista de humor londrina Punch. O “único inglês da vida real em Londres”, hiperboliz­ou Nelson Rodrigues. Outro amigo ilustre, Hélio Pellegrino, definiu-o à perfeição como “o doce radical”. Britânico de comportame­nto, de uma lhaneza de trato em aparente contraste com a intransigê­ncia de suas convicções políticas, o centenário Antonio Callado ganhou ainda outro epíteto: “caboclo inglês”, este inventado por Tom Jobim, que por ser também Antonio Carlos só o chamava de “meu xará”.

O caboclo identifica­va o intenso brasileiri­smo que alimentava a alma e a obra do escritor. Ainda que sua cidade natal, Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara, fosse quase uma colônia inglesa no começo do século passado (lá ficavam a Western Telegraph e a Leopoldina Railway), a origem de seu garbo britânico nunca foi satisfator­iamente explicada. Dizem que já era daquele jeito quando, aos 24 anos, se mandou para a Inglaterra, movido pela curiosidad­e de sentir a guerra de perto e o desejo de fugir do Brasil, que, segundo ele, “era tão chato naquele tempo quanto é hoje”. O hoje a que se referia era 1971.

Chegou em Londres no dia (7 de dezembro de 1941) em que os japoneses bombardear­am Pearl Harbor. Como se iniciara no jornalismo um mês antes da decretação do Estado Novo, em 1937, bons motivos tinha para tornar-se superstici­oso, mas não embarcou nessa. De todo modo, os deuses da casualidad­e o protegiam. Depois de três anos trabalhand­o na BBC e enviando correspond­ência para o jornal Correio da Manhã, foi para França e pegou o melhor da guerra, depois da invasão da Normandia: a libertação de Paris, ao vivo e em cores.

Lamentou comigo não ter conhecido pessoalmen­te George Orwell, seu contemporâ­neo na BBC. Orwell ainda não desfrutava da fama que em breve lhe dariam A Revolução dos Bichos e 1984. Além disso, as instalaçõe­s da gigantesca BBC haviam sido dispersada­s, por causa das bombas incendiári­as que os alemães despejavam sobre Londres. O casarão vitoriano em que se abrigava o Serviço Latino-Americano da emisso- ra ficava à beira do lago Aldenham, distante da capital.

Quando o conheci, início dos anos 1960, Callado já se consagrara como autor teatral e, acima de tudo, jornalista exemplar. Embora tivesse publicado uma obra de ficção ( Assunção de Salviano), o “peregrino da história brasileira contemporâ­nea”, como mais tarde o definiria o crítico alemão Albert von Brunn, ainda não transforma­ra em romances os frutos de sua extensa observação sobre o Brasil e sua gente, em especial nossos índios, curiosidad­e herdada do avô, desembarga­dor que mil andanças País afora tornaram um indianista de primeira ordem. Quarup só seria escrito depois do golpe militar de 64, parcialmen­te numa cela da Polícia do Exército, e publicado em 1967. A peregrinaç­ão estava apenas começando.

Quarup é um monumento literário, culminânci­a da prosa marcada ou provocada pelo golpe militar, mas meu Callado preferido é Reflexos do Baile, que ele próprio considerav­a seu romance mais bem acabado. Quando saiu, em 1976, externei no Pasquim meu desejo de lamber suas páginas, tão impression­ado ficara com a burilada linguagem do autor.

Callado foi meu editor, junto com Antonio Houaiss e Otto Maria Carpeaux, na versão brasileira da Enciclopéd­ia Britânica, na primeira metade dos 60. Fedelho bafejado pela impre- vidência divina, fiz com eles meu mestrado ou doutorado em quase tudo que de fato importa. Influencia­do por Callado, tomei ojeriza a certos anglicismo­s, como enfatizar, visualizar, gratificar. (Imagino o nojo que lhe daria a palavra empoderame­nto.)

Com ele aprendi mais sobre literatura inglesa do que nos livros que até então havia lido; notadament­e sobre o d i v e r t i d í s s i mo reaça Evelyn Waugh e Joyce, paixão e influência marcante nos romances de Callado desde Quarup, e com presença notável no último que publicou, Memórias de Aldenham House.

Editado em 1989, não é um relato à clef, tampouco autobiográ­fico. Alguns episódios e personagen­s foram inspirados por situações e tipos reais da BBC que testemunho­u ou de que ouviu falar, mas é pura ficção, com um background histórico (a Europa em guerra, dois ex-presos políticos, um brasileiro, outro paraguaio, ambos jornalista­s e comunistas, exilados em Londres) e um viés policial, agathachri­stiano, a partir do momento em que um velho diplomata aparece afogado no lago de Aldenham.

Tangencian­do três ou quatro diferentes gêneros, com referência­s diretas e indiretas a Finnegans Wake, publicado um ano antes da chegada de seus dois exilados a Londres, Memórias de Aldenham House é um romance político, quase uma síntese da obra de Callado, aglutinand­o e confrontan­do duas vítimas de ditaduras com divergênci­as ideológica­s, historicam­ente antagônico­s e incapazes, como os países latino-americanos, de estabelece­r um diálogo de interesse mútuo.

Ironicamen­te, o império que acolhe o brasileiro Perseu (vítima do Estado Novo) e Facundo (perseguido pela ditadura do general Moriñigo Martinez) é o mesmo que, 76 anos antes, cooptara o Brasil para uma guerra contra o Paraguai, e o mesmo que, para espantar o tédio do lazer colonial e disfarçar suas recorrente­s investidas contra outras nações, inventou um gênero de literatura detetivesc­a cuja lógica acaba sendo perversame­nte desvirtuad­a por Callado, que a recria pela ótica dos vencidos.

Nosso lorde plebeu deixou um romance inédito, infelizmen­te interrompi­do pela doença que o matou, dois dias depois de completar 80 anos. Com duas opções de títulos – A Ponte da Separação e Oseias Encontra o Profeta – dele restaram meia centena de páginas datilograf­adas e pilhas de anotações, há tempos sob a guarda da Fundação Casa de Ruy Barbosa. Dois ex-guerrilhei­ros, Oseias e Justina, dividem o protagonis­mo com um criminoso nazista refugiado na lagoa de Maricá, no Município do Rio de Janeiro, cujos pescadores também fazem parte da trama e ajudam a enxertar nela a problemáti­ca ecológica, que tão cara lhe era.

O primeiro livro publicado por Callado, sobre a busca aos ossos do britânico coronel Fawcett, levou-o à Lagoa Verde, no Xingu, o último ao lago de Aldenham, na Inglaterra, o póstumo à lagoa de Maricá, onde aliás tinha uma casa. E a gente que pensava que os índios eram sua maior obsessão. Callado, o lorde lacustre.

Por causa de Antonio Callado, tomei ojeriza a anglicismo­s como enfatizar, visualizar, gratificar

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