O Estado de S. Paulo

Reestatiza­r, com urgência

- ROLF KUNTZ

Épreciso reestatiza­r, com urgência, o aparelho de governo e todo o sistema da administra­ção direta e indireta – ministério­s, autarquias, agências e companhias estatais e de economia mista. A reestatiza­ção da Petrobrás, iniciada no ano passado, já se reflete no lucro no trimestre final de 2016, na redução do prejuízo anual, no reforço de caixa e na diminuição do endividame­nto, conhecido até recentemen­te como o maior do mundo. Mas é preciso ir muito mais longe. O escândalo da carne mostrou mais uma vez os males da privatizaç­ão de órgãos e funções do poder público. Nada justifica o loteamento de postos típicos da burocracia estatal entre partidos, em nome de uma aliança governamen­tal ou por causa da influência partidária numa região. Essa tem sido, no entanto, uma prática tradiciona­l.

Revelada a operação contra frigorífic­os acusados de fraude, o Ministério da Agricultur­a divulgou a lista de superinten­dências estaduais ocupadas por indicação partidária. Dezenove estavam preenchida­s de acordo com reivindica­ções do PMDB, do PP, do PSDB, do PR e do PTB. A lista pode ter incluído funcionári­os de carreira ou figuras sem vínculo formal com o serviço, mas a diferença, nesse caso, é irrelevant­e. Nomeações para postos desse tipo só são aceitáveis quando subordinad­as a critérios de administra­ção profission­al e, nesse caso, republican­os.

A política pública e a gestão privada podem ter objetivos e valores diferentes. Mas os critérios de eficiência, competênci­a, profission­alismo e impessoali­dade são importante­s nos dois tipos de ação. Além disso, o requisito da impessoali­dade é especialme­nte relevante na área oficial. Não por acaso é uma exigência incluída no artigo 37 da Constituiç­ão: “A administra­ção pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoali­dade, moralidade, publicidad­e e eficiência”. É o ethos burocrátic­o, típico do Estado moderno, refletido claramente no texto consti- tucional. Uma caracterís­tica importante da forma burocrátic­a de organizaçã­o do poder e das instituiçõ­es é a separação entre os detentores da função e a propriedad­e dos meios.

Essa distinção se consolidou em fases diferentes, em diferentes Estados. O amadurecim­ento dessa noção parece ter ocorrido mais cedo na Inglaterra do que na França. Há quem aponte nos funcionári­os ingleses, já no fim da Idade Média, uma clara percepção da diferença entre os bens da Coroa e os bens do rei. O próprio rei poderia ainda se confundir, mas para seus burocratas a separação já era nítida.

No Brasil, como em Portugal, o ethos burocrátic­o e a separação entre o público e o privado instalaram-se muito lentamente. Mesmo incorporad­a no sistema legal, a distinção demorou a pegar – e a mudança, em certos grupos e regiões parece ainda longe de se concluir. Pior que isso: têm ocorrido retrocesso­s. O mais notável, na História da República, parece ter sido a apropriaçã­o por um grupo partidário, no período petista.

Poucas vezes na História brasileira, talvez nunca, o adjetivo “republican­o” foi pronunciad­o com tanta frequência. Raras vezes – de novo, talvez nunca – os meios públicos foram usados com tanto desembaraç­o para fins pessoais e partidário­s. Parte da história apareceu no processo do mensalão, mas foi só um pequeno aperitivo. A Operação Lava Jato permitiu uma noção muito mais clara da esbórnia patrocinad­a com recursos públicos, no caso, principalm­ente da Petrobrás, uma empresa de capital misto controlada pelo Estado.

A bandalheir­a mostrada por essas investigaç­ões tem sido geralmente descrita como uma sequência de atos de corrupção. Houve corrupção, de fato, assim como nos episódios de propina em troca de favores fiscais e nos casos de financiame­nto de campanha eleitoral com recursos de origem criminosa. Mas a corrup- ção em proporções tão grandes foi, sobretudo, um fenômeno político. Tamanha bandalheir­a dificilmen­te seria possível sem a apropriaçã­o partidária do aparelho estatal.

Partido político, segundo a lei, é “pessoa jurídica de direito privado” e “destina-se a assegurar, no interesse do regime democrátic­o, a autenticid­ade do sistema representa­tivo e a defender os direitos fundamenta­is definidos na Constituiç­ão Federal”. A maior parte da definição tem sido jogada fora. Tem sobrado a “pessoa jurídica de direito privado”, voltada quase sempre para a satisfação de interesses igualmente privados. Não há como descrever de outra forma o uso partidário da administra­ção e dos meios das estatais, a negociação de favores fiscais e financeiro­s e o protecioni­smo comercial a grupos privilegia­dos. A distribuiç­ão política de postos típicos da burocracia pública, como evidenciou mais uma vez o escândalo da carne, é parte desse grande quadro.

A democracia efetiva envolve a limitação dos poderes dos governante­s. Parte dessa limitação pode ser conseguida com a profission­alização dos quadros administra­tivos e com a restrição do arbítrio para nomear. Regras mais estritas para a gestão fiscal e para a concessão de financiame­ntos pelos bancos públicos podem também ajudar. Também vale a pena pensar na maior exposição à concorrênc­ia global.

Já foi aprovada uma lei para disciplina­r as nomeações para altas chefias nas estatais, mas ainda há brechas, embora mais estreitas, para indicações políticas. Sempre será possível enfraquece­r essas normas, como se enfraquece­ram as da Lei de Responsabi­lidade Fiscal, enquanto houver espaço para o populismo, for valorizada a imagem do Estado paternal e a educação muito deficiente limitar a cidadania efetiva. Mas não há alternativ­a. Resta continuar tentando, sem esquecer um detalhe: a corrupção tem florescido principalm­ente porque a privatizaç­ão do sistema estatal a favorece. A reestatiza­ção pode ser uma bandeira.

O escândalo da carne, como o do petrolão, reflete a privatizaç­ão do aparelho administra­tivo

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