O Estado de S. Paulo

Juízes políticos?

- ROBERTO ROMANO

Alguém se candidata ao cargo de juiz. Para ganhar votos, distribui bolinhos, cupons de gasolina, pizzas para professore­s de escolas públicas, bebidas grátis para a patuleia. É assim que a campanha eleitoral de Thomas Spargo lhe fornece a toga em Nova York, no ano da graça de 1999. Eleito, Spargo cria elos com políticos que arrecadam estranhos fundos partidário­s. Sua esperteza lhe garante lugar elevado na judicatura, pois chega em 2001 à Suprema Corte do Estado. Ele sofre processo na Comissão de Conduta Judicial, mas não muda o comportame­nto. Em 2006 é destituído por exigir propina de advogados, sua condenação sai em 2009.

A crônica não é lisonjeira, na terra que preza a dupla Law and Order. Mas boa maioria dos juízes norte-americanos opera na mesma zona cinzenta entre atividades judiciais e partidária­s. É o que o jornal The New York Times batizou de “realismo legal”. Os magistrado­s labutam, na essência, em horizonte político (J. Bybee, k.: All Judges are Political, except when they are not, acceptable hypocrisie­s and the Rule of Law, Stanford Law Books, 2010).

Se nos Estados Unidos ocorre o conúbio de tribunal e política, que dizer do Brasil? A União Nacional dos Juízes Federais (Unajuf) quer magistrado­s em pleitos e partidos ( Estado, 14/3). Mas aqui nenhum juiz é sufragado pela stulta plebs. Nossas togas são escolhidas em concursos, sem favores e votos do eleitor. A dignidade do tribunal, em terras brasileira­s, não seria conspurcad­a por ofertas de pizzas e bebidas gratuitas aos cidadãos. Os juízes pertencem a uma estirpe superior. Seu ânimo e suas sentenças nada devem aos escrutínio­s em que se pronuncia o “leigo”. Tais enunciados, entretanto, resumem uma ilusão. Estamos aqui em pleno domínio do mito, cauim sorvido em talagadas que reiteram a dormência geral.

Segundo Thomas Spargo, os juízes são políticos “except when they are not”. O sentido da frase é tarefa da mais árdua hermenêuti­ca. Nos Estados Unidos, adianta Bybee, “mui- tos reconhecem que o processo judicial é permeado pela política. Outros parecem acreditar que as decisões judiciais são definidas por fundamento­s puramente legais”. Mas cerca de 87% dos juízes, em 39 unidades da Federação, passam pelas urnas. Aqueles pleitos não diferem dos efetivados para os demais Poderes públicos. E eles custam muito financeira­mente. Em 2004 a eleição para a Suprema Corte de Illinois gastou mais do que 18 das 34 eleições para o Senado realizadas no mesmo ano. Anúncios na TV e outros meios são garantidos por grupos de interesse e partidos políticos (Cf. Bybee, J. (Ed): The Collision of Courts, Politics, and the Media, Stanford, 2007).

Custos chamam doadores, doadores nem sempre (o Brasil é prova) buscam alvos legais. Logo, a fé na obediência imparcial e objetiva à Constituiç­ão sofre abalos. A média das pesquisas feitas entre 1989 e 2009 mostra que 67% dos entrevista­dos consideram os juízes imparciais. Mas 70% têm certeza que as sentenças trazem máculas políticas. Para atenuar o problema desde 1940 alguns Estados empregam recrutamen­to diverso do das urnas. É o “Plano Missouri”. Comissões não partidária­s avaliam candidatos e os recomendam. Aos cidadãos é perguntado apenas se aprovam ou não os juízes; 34 Estados usam variantes do “Plano Missouri”. Tais consultas são menos onerosas do que as outras.

Mas, cautela! O processo ordenado supostamen­te no mérito dos candidatos, adianta Bybee com provas, “pode envolver politicage­m ( politickin­g) e lobbies nos bastidores”. O âmbito federal, no qual os juízes não passam por eleições, é mais confiável? Indicados pelo presidente, acolhidos por senadores, magistrado­s têm permanênci­a garantida, desde que seus costumes sejam pautados pelo decoro. Encantador universo do sonho. Na vida real não é assim. Na Suprema Corte “independen­te do povo, dos legislador­es e de todo poder sob o firmamento”, os juízes “percebem a si mesmos independen­tes do próprio céu” (Shklar, J. N., Legalism: Law, Morals, and Political Trials). A seleção para os pretórios federais, hoje, “é um assunto altamente político, com funcionári­os eleitos que perseguem os nomeados para resolver problemas importante­s de partidos e proeminent­es grupos de interesse” (Hart, H. L.A., The Concept of Law). Poderíamos seguir as teses do autor e de outros sobre a Justiça enleada em política nos Estados Unidos, na França, na Alemanha, na Itália, etc. Do jurista Bybee, urge consultar a importante resenha Electing Judges: The Surprising Effects of Campaignin­g on Judicial Legitimacy”, em Book Review 22, 2012. Para uma análise diversa, Tamanaha, B. Z., Beyond the Formalist-realist Divide: The Role of Politics in Judging, 2010.

No Brasil, causa tristeza a mendicânci­a – ou o termo chulo usado por Romero Jucá – de quem deseja lugar nos tribunais superiores e no Supremo. A lista de votos inclui muitos fornecidos por congressis­tas corruptos. Candidatos prometem a políticos, depois presos e condenados, “matar no peito” processos contra eles. Outros aceitam parolagens em chalanas e são aprovados, mesmo constatado plágio em seu doutoramen­to. Uma consulta à biografia de Saulo Ramos ilustra o ponto. Há diferença entre tais zumbaias e a demagogia dos juízes eleitos pelos cidadãos? Os nossos candidatos à toga não distribuem pizzas aos parlamenta­res. Eles prometem – se entregam é outro assunto – leniência explícita ou velada. São curiosos os encontros entre julgadores e réus, no segredo dos gabinetes ou no exterior. Salamalequ­es, num Congresso que tudo troca, parecem piores do que a bajulação das massas. A promiscuid­ade se transforma em regra. Procuremos saídas que mantenham a dignidade do juiz, da lei, do cidadão honesto. O Estado brasileiro, nos três Poderes, exala miasmas irrespiráv­eis.

O Estado brasileiro, nos três Poderes, exala miasmas irrespiráv­eis

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