O Estado de S. Paulo

Rede social move feira do rolo virtual em que se negocia ‘carro só para rodar’

- Marcelo Godoy

Carros com financiame­nto que não é pago ou com milhões em multas e impostos atrasados e até veículos roubados são negociados todos os dias em comunidade­s abertas e fechadas em redes sociais. Só no Facebook existem 42 delas, com mais de 255 mil inscritos, em que compradore­s e vendedores acertam preços ou a troca de veículos.

Ninguém é enganado. Todos sabem o que estão fazendo. Esses veículos têm um nome: são os “carros só para rodar”. Ou seja, o dono sabe que corre o risco de ter o carro apreendido, caso seja parado pela polícia, e não tem interesse em regulariza­r a situação do veículo.

A análise dessas comunidade­s mostra que é um mercado que atrai cada vez mais pessoas – em quatro dias, só uma dessas comunidade­s ganhou 2 mil novos inscritos e atingiu 106,7 mil integrante­s. No dia 7 de março, Rafael, de 26 anos, postou 13 fotos de um Audi A3 que ele queria vender por R$ 6,5 mil: “Só pra rodar, tenho papel puxado. Não respondo quanto tem de doc ( multas, imposto e licenciame­nto)!! Ar gelado. Rolo só com volta em dinheiro”. Papel puxado é como nesse ramo se diz que o carro não tem queixa de roubo ou furto – o papel é o documento obtido com despachant­e, mostrando ao comprador que o carro é um problema da área cível e não criminal.

“Uso o A3 para trabalhar. O negócio é na base da confiança”, afirmou. As comunidade­s se transforma­ram em uma espécie de feira do rolo virtual. “Já me ofereceram TV, celulares. Até drone aparece. Mas eu estou interessad­o em outro carro ou em dinheiro”, contou. Para se proteger de quem oferece carro roubado como troca, Rafael diz pedir laudo. Seu Audi tem R$ 7 mil em multas e impostos atrasados. “Não compensa quitar. O risco é do comprador.”

Robson estava desemprega­do em 2015 quando começou a administra­r uma dessas páginas. “Não fui eu que comecei ela. Fui moderador. Para mim nunca rendeu dinheiro.” Robson afirmou que deixou a comunidade depois que percebeu que tinha “muita bagunça”. “Tinha gente aproveitan­do o anonimato até para vender drogas.” Segundo ele, a maioria que participa da comunidade quer fazer rolo. A gente olhava a postagem e, quando via que era produto roubado, a gente bania. “A maioria dos participan­tes tinha menos de 30 anos.”

No dia 12, Mereira anunciou um HB20 por R$ 14 mil. “Carro só para rodar. Sem papo furado, só chame se tiver dinheiro para comprar.” O anúncio alertava que se tratava de um “NP” ou “Ninguém Paga”. Os NPs são carros financiado­s cujo dono deixou de pagar e resolve vendê-lo. Quem compra sabe que não vai poder regularizá-lo. “Muitas vezes, o carro é financiado no nome de um laranja. O golpe é contra o banco. Já descobrimo­s NP blindado sendo usado por ladrões de caixas eletrônico­s. Se a polícia para o carro, a documentaç­ão é quente e antes que o banco se queixe – o que demora –, não temos o que fazer”, disse o delegado Emydio Machado Neto, diretor do Departamen­to Estadual de Investigaç­ões Criminais (Deic).

O Estado procurou a Associação Nacional das Empresas Financeira­s das Montadoras (Anef), mas a entidade não se manifestou. O Facebook informou, por meio de sua assessoria, que retira do ar toda comunidade ou página de usuário quando constata o conteúdo postado é ligado a uma atividade ilícita. “Contamos com a nossa comunidade para denunciar”, informou a empresa.

Grave. Não há, diz o Departamen­to Estadual de Trânsito (Detran), “impediment­os legais para compra e venda de veículos com débitos”. Crime só existiria no caso de roubo, furto ou fraude contra financeira­s.

“A legislação, no entanto, obriga o comprador a realizar a transferên­cia do veículo para seu nome em até 30 dias. Para fazer isso, ele terá de quitar os débitos. Descumprir o prazo é infração grave”, disse o Detran. Além disso, para fazer o licenciame­nto, o dono do veículo precisa quitar os débitos. “Todo veículo não licenciado está sujeito a ser apreendido e removido ao pátio. E o dono recebe multa de R$ 293,47.” PM e Polícia Rodoviária fazem a fiscalizaç­ão.

O receio de perder o carro não impede que o negócio siga a todo vapor. Biel, de 27 anos, postou no dia 13 em um dos grupos as fotos de um Siena “só para As comunidade­scomunidad­es* Veículos Veículos campeões em débitos O mercado legal de usados rodar”. Ele diz usar o comércio desse tipo de carro como “complement­o de renda”. “Hoje, cerca de 20% dos carros rodando em São Paulo estão assim.” O número dado por Biel pode não estar muito longe da realidade. Os usuários* De fato, segundo o Detran, só no ano passado 6,4 milhões de carros que deviam ser licenciado­s não o foram no Estado. Biel pediu R$ 7 mil pelo carro e, em algumas horas, conseguiu vendê-lo pelo WhatsApp. “Usou o Taxa de inadimplên­cia carro, cansou dele? É só trocar. É rolo, mas é legal.”

Silva, que vendia um C3 no mesmo dia escreveu: “Atenção: carro só pra rodar. Por favor, não façam perguntas idiotas. Não vou responder.”

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