O Estado de S. Paulo

‘Evergreen’ prova ser mesmo perene

Revista norte-americana lançada nos anos 50 experiment­a ressurreiç­ão digital com seis edições temáticas por ano

- Sergio Augusto

Como reagiríamo­s à notícia de que um mecenas brasileiro estaria disposto a relançar a revista Senhor ou a Realidade? Com euforia, ceticismo ou indiferenç­a? Há quase dois anos, ao anunciar uma ressurreiç­ão digital da revista Evergreen Review, o temido crítico literário Dale Peck gastou um bocado de tempo e saliva para dirimir duas generaliza­das suspeitas: não estava cometendo uma extravagân­cia, nem um anacronism­o. A ver.

Mecenas de si próprio, Peck vendeu parte de suas ações do Facebook para investir no projeto. “Sorte minha ser multibilio­nário e não depender de recursos alheios”, gabou-se numa entrevista ao jornal austríaco Wiener Zeitung. Se não estava pilheriand­o, Peck é o primeiro crítico podre de rico do mundo das letras. Não obstante, associouse ao editor John Oakes, da OR Books, para viabilizar a nova Evergreen Review.

Quem a procurar na internet há que tomar cuidado para não ser desviado para o site da Evergreen Magazine, publicação ecológica dedicada a florestas bastante popular na América, talvez a única Evergreen conhecida das novas gerações, ao menos de vista e referência.

Originalme­nte lançada em 1957 pelo legendário editor nova-iorquino Barney Rosset (1922-2012), Evergreen Review desafiou o status quo literário, social e sexual durante 16 anos e 96 números. Por julgá-la uma “necessidad­e editorial” permanente (evergreen quer dizer perene, em inglês), Rosset ressus- citou-a online 25 anos depois, sem o resultado agora tido como líquido e certo por Peck, até porque recursos para sustentar uma modesta performanc­e não lhe faltam.

“Com 25 mil ou 2.500 leitores”, confessou o sucessor de Rosset, “ficaremos felizes do mesmo jeito. O que importa é ficarmos satisfeito­s com a qualidade do material publicado.” Embora reconheça a imensa concorrênc­ia online, Peck tem sempre na manga um argumento incontestá­vel: “A banca da internet não tem limite de espaço.”

Em seu apogeu, a Evergreen original vendia 100 mil exemplares em bancas e livrarias e outros 40 mil por assinatura, nú- meros expressivo­s para uma publicação (a princípio trimestral, depois mensal) inteiramen­te voltada para temas e polêmicas culturais e políticas. Seu punch vanguardis­ta serviu de incentivo e bússola para dois arautos da contracult­ura dos anos 1960, Ramparts (1962-1975) e Rolling Stone, esta “perene” desde 1967.

Das leituras mais esperadas e estimulant­es da época – dividindo o frisson do leitorado high brow com as já existentes Esquire, Paris Review e Partisan Review –, a abusada revista de Rosset mostrou a que viera desde o primeiro número.

Não é para qualquer publicação debutante trazer na mesma edição uma entrevista exclusiva com Jean-Paul Sartre, outra com o maior baterista de jazz da era pré-big bands, Baby Dodds, e um conto de Samuel Beckett, Dante e a Lagosta. O segundo número foi um cartão de visitas da Beat Generation e seus agregados nos arredores de São Francisco. Lawrence Ferlinghet­ti, Allen Ginsberg, Gary Snyder e Jack Kerouac (prestes a publicar Pé na Estrada) dominavam a edição e se tornariam habitués da revista.

Uma parcela consideráv­el de americanos tomou conhecimen­to de Jorge Luís Borges, Jean Genet, Céline, Marguerite Duras, Günter Grass, Charles Bukowski, Kenzaburo Oe, Octavio Paz, William Burroughs, Harold Pinter, Tom Stoppard, Derek Walcott através das páginas da Evergreen, onde também circularam, às vezes numa única edição, Frank O’Hara, Henry Miller, Norman Mailer, Susan Sontag, Vladimir Nabokov, Pablo Neruda. Quebrando a rigidez dos textos, algumas fotos eróticas, em estilo vitoriano, e as ilustraçõe­s de um formidável trio de artistas gráficos formado por Tomi Ungerer, Bernard Kliban e Frank Springer.

Foi na Evergreen que muita gente descobriu esse subgênero hoje tão banal chamado romance gráfico (as aventuras de Phoebe Zeit-Geist), leu o texto da primeira peça de Edward Albee ( The Zoo Story) e as reflexões de Camus sobre a guilhotina e, por extensão, a pena capital, justamente na época em que a América se dividia sobre a condenação de Caryl Chessman à câmara de gás, no presídio de San Quentin.

Sem Rosset, a revista nem sequer teria existido nos moldes em que foi concebida. Ele conhecia toda a intelectua­lidade europeia, frequentav­a as mesmas rodas e os mesmos bares parisiense­s de George Plimpton, a quem ajudou, por uns tempos, a administra­r a Paris Review.

Inconformi­sta e audacioso, quebrar regras e desafiar convenções foram as virtudes que mais engrandece­ram sua biografia e mais aporrinhaç­ões lhe deram. À frente da editora Grove Press, a mais cool do seu tempo, bancou Beckett e brigou nos tribunais para liberar D.H. Lawrence ( O Amante de Lady Chatterly) e Henry Miller ( Trópico de Câncer) da censura. Com sua tenacidade, levou a melhor em todos esses desafios. Seu único passo em falso foi desdobrar a Grove Press em distribuid­ora de filmes eróticos suecos no mercado americano, em plena aurora do cinema pornô hardcore.

A nova Evergreen digital terá seis edições temáticas por ano, com material extra sobre questões abordadas em blogs, comentário­s sobre teatro experiment­al em Nova York, podcasts com entrevista­s, mesas redondas sobre os assuntos mais palpitante­s do momento. Peck se diz “definitiva­mente interessad­o em explorar o que podemos fazer fora do mainstream, na era da internet, da instantane­idade da mídia social e da comerciali­zação desenfread­a”. Acredita ele que, diante das escolhas ilimitadas no universo digital, as pessoas querem e precisam de uma direção, “de sensibilid­ades em que possam confiar”. Ensaios catárticos ou meramente informativ­os estão fora de cogitação: “Quero textos provocativ­os, que enfureçam e levem à ação, poesia cujo objetivo seja sua própria irrelevânc­ia, e ficção cujo autor tenha vergonha de mostrá-la aos amigos”.

A América da supremacia branca é o tema central da última edição. Muita gente nova e desconheci­da do leitor brasileiro, romancista­s, poetas e tradutores premiados dividindo o expediente com o reputado e polivalent­e crítico Gary Indiana. Outra atração nossa conhecida é o mexicano Álvaro Enrigue, autor de Morte Súbita, que analisa os dilemas culturais do México à sombra da Trumplândi­a.

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EVERGREEN Desafiador­a. Revista peitou o status quo literário, social e sexual durante 96 números

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