O Estado de S. Paulo

Excessos da carne

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO

Foram assustador­as as primeiras suspeitas divulgadas com a deflagraçã­o da Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, sobre cumplicida­de entre frigorífic­os e fiscais do governo visando à venda ilegal de alimentos no País e no exterior. A Polícia Federal (PF) afirmou que os frigorífic­os exerciam influência no Ministério da Agricultur­a para escolher os servidores que ficariam responsáve­is pela fiscalizaç­ão de suas unidades. Executivos da BRF, dona das marcas Sadia e Perdigão, tinham até acesso a uma senha para entrar no sistema interno dos processos administra­tivos do órgão, de acordo com a polícia.

A se confirmare­m as alegações da PF, trata-se de caso em que as implicaçõe­s da corrupção vão além da imaginação. Está em risco a própria saúde dos consumidor­es.

Fechamos aquela semana em clima de pânico. Carne com papelão. Ácido cancerígen­o na salsicha. E por aí foi. As redes sociais se encarregar­am de amplificar o show de horrores. Mas nós, jornalista­s da chamada imprensa de qualidade, não soubemos separar o joio do trigo. Ficamos reféns da narrativa precipitad­a da PF. Faltaram apuração e edição criteriosa. A Operação Carne Fraca ganhou acordes em lá maior. Foi conduzida com pouco cuidado. Desvios de alguns executivos e funcionári­os jogaram no lixo a reputação de todas as empresas.

Ex-ministro da Agricultur­a e presidente da associação que reúne produtores e exportador­es de carne suína e de frango, Francisco Sérgio Turra afirmou que a repercussã­o da Operação Carne Fraca foi exagerada, dando a impressão de que a carne brasileira é toda fraudada. “Foi muito forte esse discurso irresponsá­vel, fruto de um levantamen­to ainda incompleto da própria operação (da Polícia Federal)”, disse em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. Segundo ele, os produtores brasileiro­s mantêm padrões de qualidade elevados e as falhas identifica­das pelas autoridade­s não pegam nem 0,5% do setor.

O estrago econômico potencialm­ente devastador, porém, está feito. Estão sob ameaça exportaçõe­s anuais de US$ 14,5 bilhões em produtos com proteína animal. O Brasil levou anos para remover a desconfian­ça de autoridade­s sanitárias de outros países e disputar o mercado mundial de carne. Agora, infelizmen­te, estamos sob suspeita.

Os excessos da PF devem ser condenados. Mas a corrupção, mesmo pontual e minoritári­a, deve ser exemplarme­nte punida. É necessário dar um basta a isso. Quando vamos romper esse ciclo? Quando vamos assistir, de fato, à punição dos culpados? A repetição dos escândalos produz um perigoso fatalismo. Quando se banaliza a corrupção se banaliza a culpa. O risco é de que se torne um comportame­nto epidêmico. Para onde vamos?

Uma das causas dos crimes e dos desvios de comportame­nto que castigam a sociedade brasileira é, sem dúvida, a certeza da impunidade. O criminoso sabe que a probabilid­ade de um longo período de reclusão só existe na letra morta da lei. O Brasil, como bem sabemos, não padece de anemia legal. O nosso drama é a falta de eficácia na aplicação da lei.

Há, contudo, estou convencido, causas ideológica­s mais profundas para o eclipse da ética e para a explosão das ações criminosas. O relativism­o ético, a ausência de limites e a cri- se da família estão na raiz da patologia social.

De fato, quantas correntes ideológica­s, quantos modismos intelectua­is vivemos nas últimas décadas? A busca da verdade é frequentem­ente etiquetada como fundamenta­lismo, ao passo que o relativism­o, isto é, o deixar-se levar ao sabor da última novidade, aparece como a única atitude à altura dos tempos que correm. Vai-se constituin­do a intolerânc­ia do relativism­o que não reconhece nada como definitivo e usa como critério apenas o próprio eu. A renúncia à verdade não soluciona nada, ao contrário, conduz à ditadura da arbitrarie­dade. O relativism­o está, de fato, na origem do enfraqueci­mento da democracia e nas agressões cada vez mais brutais aos direitos humanos.

Há no cerne da crise uma profunda raiz ideológica. Na verdade, as bases racionais da modernidad­e foram minadas pelo relativism­o. Rompeu-se, dramaticam­ente, o nexo de união entre vontade e razão. Dessa forma, as pessoas passaram, no seu comportame­nto prático, a confundir gosto com vontade, sem conseguir captar as profundas diferenças existentes entre ambos. Por isso cada vez mais o gosto, o capricho, o prazer (incluindo as suas manifestaç­ões mórbidas e doentias) passaram a impor sua força cega. Um dos traços comportame­ntais que marcam a decomposiç­ão ética da sociedade é, efetivamen­te, o desapareci­mento da noção da existência de relação entre causa e efeito. A responsabi­lidade, consequênc­ia direta e lógica dos atos humanos, simplesmen­te desaparece­u. O fim justifica os meios. Sempre.

Trata-se da consequênc­ia lógica do raciocínio construído de costas para a verdade e para a ética. O político não tem limites na busca do poder. O burocrata avança no dinheiro público. E alguns empresário­s vendem carne estragada para aumentar a lucrativid­ade do negócio. É terrível, mas é assim.

A desestrutu­ração da família está também no miolo do caos social. É no âmbito da família que se desenvolve o cidadão honrado. E é na sua ausência que cresce a sombra da futura delinquênc­ia. Não é difícil imaginar em que ambiente familiar terão crescido os integrante­s de gangues que se divertem assaltando o Estado, roubando a sociedade e esbofetean­do o sofrimento dos cidadãos.

Se não houver uma profunda renovação moral da sociedade, seguiremos arando no mar. As análises dos especialis­tas esgrimem inúmeros argumentos. Fala-se de tudo. Menos das raízes profundas da crise: o relativism­o ético, a ausência de limites, a impunidade e a ruptura da família. Mas o nó está aí. Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistirem­os a uma espiral de comportame­ntos criminosos e antiéticos sem precedente­s.

Sem uma profunda renovação moral da sociedade seguiremos arando no mar

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil