O Estado de S. Paulo

A leniência e a impunidade

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Cabe ao Estado investigar e, quando é o caso, punir. Às vezes, o Estado abre mão de uma integral punição como forma de avançar na investigaç­ão. Essa é a lógica tanto do acordo de delação premiada como do acordo de leniência: o poder público oferece um significat­ivo alívio à pena do criminoso ou da empresa criminosa em troca de informaçõe­s que permitam elucidar outros e maiores crimes. No caso do acordo de leniência, há também a considerar o interesse social de que a empresa retorne integralme­nte ao caminho da lei e possa, assim, dar continuida­de à sua atividade econômica.

Logicament­e, é preciso cuidado para que esses acordos auxiliem de fato o combate à impunidade, sem se transforma­rem em mera mano- bra para a diminuição das penas. Tal risco não é teórico, como lembrou recentemen­te o Tribunal de Contas da União (TCU), em decisão revelada pelo

Ao analisar a atuação do Ministério da Transparên­cia, Fiscalizaç­ão e Controlado­ria-Geral da União (CGU) nos últimos anos, inclusive no governo Dilma, o tribunal concluiu pela existência de algumas irregulari­dades nos processos de negociação dos acordos de leniência levados adiante pelo órgão do governo federal.

Segundo o relator do processo, ministro Walton Alencar, “a impressão (...) é de açodamento tendente a favorecer os interesses da pessoa jurídica em seus negócios com o Estado”. Na decisão, o TCU e n t e n d e u q u e o Mini s t é r i o d a Transparên­cia concedeu indevidame­nte benefícios a algumas empresas, suspeitas de fraudar licitações, superfatur­ar contratos e pagar propinas no governo federal.

Para os ministros do TCU, o simples interesse de algumas empresas na celebração de um acordo de leniência não pode ser motivo para suspender os respectivo­s processos de investigaç­ão. Em vez de ajudar a combater os crimes, eventual suspensão do processo, antes do acordo, contribuir­ia tão somente a que os ilícitos não tenham uma apuração adequada. O Ministério da Transparên­cia não pode considerar sanadas ilegalidad­es e prejuízos à administra­ção pública que nem sequer apurou, disse o tribunal.

Na decisão, o TCU também lembrou que cabe ao Ministério da Transparên­cia verificar se a empresa interessad­a nesse tipo de acordo é a primeira a confessar o ato lesivo. Trata-se de um importante requisito fixado expressame­nte pela Lei Anticorrup­ção (Lei 12.846/13). O acordo de leniência “somente poderá ser celebrado se preenchido­s, cumulativa­mente, os seguintes requisitos: a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito; a pessoa jurídica cesse completame­nte seu envolvimen­to na infração investigad­a a partir da data de propositur­a do acordo; a pessoa jurídica admita sua participaç­ão no ilícito e coopere plena e permanente­mente com as investigaç­ões e o processo administra­tivo, comparecen­do, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuai­s, até seu encerramen­to”, diz o art. 16, § 1.º da lei.

Em dezembro de 2015, a ex-presidente Dilma Rousseff modificou, por meio da Medida Provisória (MP) 703/2015, esses requisitos da Lei Anticorrup­ção. O Congresso corretamen­te não avalizou tais alterações, e a lei permaneceu com sua redação original. Na ocasião, o Ministério Público Federal (MPF) manifestou-se contrário ao teor da MP 703/2015. “A competênci­a excessivam­ente ampla para celebração dos acordos, com reflexos potenciais sobre ações de improbidad­e e todos os benefícios do art. 16, § 2o, da lei alterada pela MP, debilita fortemente o princípio da responsabi­lidade, deturpa a finalidade do instituto da leniência e fere a eficiência da administra­ção pública na prevenção e repressão de atos ilícitos”, dizia o parecer do MPF.

Tanto a delação premiada como o acordo de leniência só são úteis na medida em que, auxiliando as investigaç­ões, contribuam para o cumpriment­o da lei. Para tanto, a primeira condição é que a própria celebração desses acordos esteja dentro da lei.

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