O Estado de S. Paulo

Juízos políticos e garantias jurídicas

- JOSÉ EDUARDO FARIA

Dias após o término das delações premiadas de executivos da maior empreiteir­a investigad­a pela Lava Jato, advogados voltaram a denunciar o descumprim­ento da Constituiç­ão pelo pessoal de Curitiba e a censurar o protagonis­mo do STF, acusando-o de criar regras. O embate entre operadores jurídicos faz parte do cotidiano forense. Na defesa de seus interesses, cada corporação recorre a uma técnica hermenêuti­ca – da interpreta­ção secundum legem ou literal, valorizada por advogados de defesa em nome do garantismo, à interpreta­ção praeter legem, mais expansiva e considerad­a por procurador­es e juízes a mais adequada à aplicação de princípios constituci­onais, como o da moralidade.

Por trás desse debate estão os problemas decorrente­s do impacto das transforma­ções históricas sobre a arquitetur­a da ordem jurídica do País. No decorrer do século 20 o legislador brasileiro acostumou-se a editar normas igualitári­as, gerais e abstratas, concebidas com base em rotinas sedimentad­as, práticas sociais homogêneas e expectativ­as comuns de justiça. Isso era a garantia de que o custo de imposição de novas normas seria baixo. Também permitia a sistematiz­ação das normas num código, abrangendo atividades e atores sociais sem levar em conta suas particular­idades. E ainda autorizava os juristas normativis­tas a afirmar que o juiz deveria encontrar a lei, e nunca fazê-la. Mudanças ocorridas após a industrial­ização do País, entre as décadas de 1950 e 1970, exauriram essa técnica legislativ­a. A industrial­ização e a urbanizaçã­o mudaram a pauta moral da sociedade, estilhaçar­am as expectativ­as comuns de justiça e acarretara­m novos tipos de conflito.

A sociedade tornou-se de tal modo dinâmica e complexa que as rotinas foram corroídas. A criação de novos padrões comuns tornou-se inviável. E a ideia de uma cultura comum que calibrasse as expectativ­as da coletivida­de cedeu lugar a uma heterogene­idade de atores sociais, o que multiplico­u as situações particular­es. Até os anos 70 o legislador acreditou na ideia de tutelar essas situações por meio de códigos. A par- tir daí, a tutela de situações díspares exigiu tal número de artigos que levou os códigos a perder identidade doutrinári­a. Para dar conta das especifici­dades de cada setor social, a saída do legislador foi substituí-los por leis especiais.

Mas, à medida que elas se multiplica­ram, passando de 66 mil leis para 141 mil, entre 1978 e 2006, a ordem jurídica perdeu unidade lógica. E os códigos binários implícitos na concepção de regras igualitári­as revelaram-se rígidos demais para dar conta de situações multiforme­s. Em vez de se prender à distinção entre lícito e ilícito, o legislador optou por normas com textura aberta, o que mudou as estratégia­s de interpreta­ção. A adjudicaçã­o tradiciona­l, baseada na interpreta­ção secundum legem, cedeu vez a ponderaçõe­s. Defensores de uma interpreta­ção literal alegam que, ao dar sentido a conceitos indetermin­ados no julgamento de uma ação, o juiz se torna colegislad­or. Já os operadores jurídicos não normativis­tas lembram que a interpreta­ção praeter legem lhe permite adequar melhor a ordem legal à complexida­de social.

Nesse cenário, são claras as intenções dos garantista­s com relação à Lava Jato. Ao enfatizare­m uma concepção de direito codificado ou de leis especiais, eles circunscre­vem a defesa dos acusados à nulidade e à prescrição. Isso lhes permite criticar as interpreta­ções das normas mais abertas por juízes e procurador­es e denunciar violações processuai­s. Ainda que não tenha dado certo no julgamento de vários réus no caso do mensalão, o script é apontar vícios formais, pedir a nulidade das acusações e deixar o tempo correr até a prescrição das denúncias. Já os procurador­es e juízes se valem da ordem jurídica com normas mais abertas para exigir que os advogados de defesa apresentem provas e documentos que comprovem a inocência de seus clientes.

Estamos diante de um impasse entre legalistas e moralistas? Não creio. Em 29 de março de 1997, Ronald Dworkin – docente de Oxford e Nova York partidário da supremacia judicial – discutiu essa polêmica nesta página. Ele apontou a incompatib­ilidade da visão garantista do direito com a dinâmica de sociedades complexas. E também chamou a atenção para o risco de tensões institucio­nais nos casos difíceis – aqueles em que, quando a interpreta­ção a ser dada a um texto legal não é clara, o juiz não tem outra opção a não ser inovar, fazendo um julgamento político. Mas, se as garantias fundamenta­is forem preservada­s, essa prática não é antidemocr­ática, advertiu. Para Dworkin, esse julgamento é sempre polêmico, por suscitar divergênci­as sobre os princípios políticos que melhor representa­m a tradição moral de uma comunidade. As divergênci­as refletem um desacordo mais profundo sobre qual das diversas justificat­ivas em debate seria moralmente superior.

Segundo ele, apesar de muitas vezes não ter escolha a não ser tomar decisões morais e políticas, o juiz não elabora outra lei por ter a “visão da integridad­e” do ordenament­o. Isso porque, ao aplicar num caso concreto conceitos indetermin­ados de uma lei, age como um romancista ao qual foi solicitado um novo capítulo na sequência do que já foi escrito. O juiz não pode assim começar um romance próprio. Deve só desenvolve­r temas relacionad­os a partir da trama já tratada no romance inacabado. Com isso ele mantém a coerência com o passado, ao mesmo tempo que ajusta o romance (a jurisprudê­ncia) conforme o desdobrar do enredo (ou dos valores da comunidade).

A visão de integridad­e mostra como o juiz pode ser criativo, sem contar apenas com suas convicções pessoais, tornando a lei mais consentâne­a com o senso histórico de justiça da comunidade, diz Dworkin. Se estava certo, quanto mais mantiver a coerência de suas decisões e não se deixar levar por bravatas moralistas, mais o pessoal da Lava Jato poderá consolidar uma ordem jurídica capaz de impedir a captura do poder público por políticos e empreiteir­os.

Estamos diante de um impasse entre legalistas e moralistas? Não creio

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