O Estado de S. Paulo

À luz da lei

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Na sexta-feira passada, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes, decidiu instaurar sindicânci­a interna para apurar o vazamento dos depoimento­s dos delatores da Odebrecht prestados à Justiça Eleitoral. A um país que tem se acostumado a ver inúmeros vazamentos sem qualquer tipo de reação do poder público, a medida do ministro Gilmar Mendes pode parecer um tanto excepciona­l. Na verdade, situação de exceção é a absoluta tolerância com que algumas autoridade­s vêm tratando a violação de sigilo funcional, como se coisa normal fosse. Diante da existência de indícios de crime, o normal deve ser a apuração, e não a passividad­e.

A sindicânci­a foi determinad­a pelo presidente do TSE para apurar a indevida divulgação de depoimento­s de delatores da Odebrecht prestados à Justiça Eleitoral, que, até o momento, estão mantidos sob sigilo. Conforme o Estado apurou, também o relator do caso, ministro Herman Benjamin, se assustou com a notícia de que trechos das delações haviam sido divulgados. Como se vê, diante da impunidade, aumenta a ousadia de quem, indiferent­e aos ditames legais, usa o múnus público para divulgar indevidame­nte o que lhe interessa.

A decisão de Gilmar Mendes relembra que vige no País um Código Penal, cujo art. 325 tipifica como crime a quebra do sigilo funcional. É incompatív­el o combate à corrupção com tolerância­s a determinad­as ilegalidad­es, na falsa expectativ­a de que elas poderiam eventualme­nte contribuir para diminuir a impunidade.

O País não precisa de vazamentos para perseguir os criminosos, como se o sigilo legal beneficias­se os criminosos. O sigilo deve existir tão somente em função do interesse público, facilitand­o a investigaç­ão de denúncias pelas autoridade­s. Por isso, uma quebra de sigilo é grave, já que significa dificultar as investigaç­ões. Vazar informação reservada é crime e, portanto, é um ato que deve ser combatido. Não cabem tolerância­s com a ilegalidad­e, sob o risco de produzir graves confusões, que só interessam a quem não deseja a clareza da lei.

Exemplo desse tipo de confusão ocorreu na semana passada, com a resposta do procurador-geral, Rodrigo Janot, às críticas do ministro Gilmar Mendes. Houve quem interpreta­sse o episódio como uma disputa em torno da Lava Jato. De acordo com essa visão um tanto equivocada, a reação do procurador-geral seria uma defesa da operação. Ora, não se defende a Lava Jato – cujo maior mérito é fazer com que a lei seja aplicada a todos, também aos poderosos – com concessões à lei, como se a quebra de sigilo fosse coisa menor, inepta para suscitar as investiga- ções correspond­entes.

A decisão de instaurar sindicânci­a para apurar os vazamentos na Justiça Eleitoral ajuda, portanto, a reconduzir as águas do rio ao seu leito habitual. Indícios de crimes não devem suscitar rinhas entre autoridade­s. São, antes, estímulo para que cada uma cumpra o seu papel.

É preciso, portanto, investigar com diligência as denúncias. Se assim for feito, haverá inclusive menor necessidad­e de sigilo ou, ao menos, o caráter reservado das informaçõe­s poderá ser levantado mais cedo, já que as diligência­s correspond­entes àqueles dados já terão sido realizadas. Essa consequênc­ia não significa relativiza­r o crime de quebra de sigilo funcional, mas reconhecer que, quando se trabalha bem, não é preciso muito sigilo.

Num Estado Democrátic­o de Direito, o normal é a publicidad­e dos atos do poder público. Não é boa coisa que o Estado, de forma habitual, atue de modo reservado, como se tivesse algo a esconder dos cidadãos. Um ambiente de muito sigilo propicia diversas ocasiões para malfeitos. A transparên­cia da atuação do poder estatal é um enorme bem para a sociedade, que se vê assim protegida de muitos abusos que só são praticados no escuro, longe dos olhos do público.

Tudo deve estar à luz da lei. Tanto os vazamentos, para serem apurados e punidos, como os sigilos, na avaliação de sua necessidad­e e de sua duração.

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