O Estado de S. Paulo

A praga corporativ­ista

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Apesar de a Constituiç­ão estabelece­r um teto salarial para o funcionali­smo e o Supremo Tribunal Federal (STF) ter editado em 2014 a Súmula Vinculante n.º 37, que proíbe o Judiciário de aumentar salários de servidores sob o fundamento da isonomia, integrante­s das carreiras jurídicas do Estado continuam promovendo corridas pela “equiparaçã­o salarial progressiv­a” e se valendo de artimanhas para assegurar tratamento isonômico. Quando uma corporação obtém alguma vantagem, as demais imediatame­nte exigem o que chamam de “simetria funcional”, gerando efeito cascata.

Por isso, não pode passar despercebi­da uma decisão do STF que tentou dar um basta a essa velha praga na administra­ção pública – a ciranda da isonomia. Reafirmand­o sua jurisprudê­ncia, o STF cassou decisão adotada pela Justiça Federal em 2016, que havia autorizado o pagamento mensal de auxílio-moradia a uma juíza do Trabalho, em Santa Catarina. Ela alegou que, para tomar posse no cargo de substituta, em 1999, teve de mudar de domicílio. E afirmou que o benefício lhe era devido porque os membros da magistratu­ra têm direito a isonomia com relação aos membros do Ministério Público Federal, que recebem a ajuda. Mais espantoso do que o argumento, como mostrou o site Consultor Jurídico, foi o fato de que a Justiça Federal não só o acolheu, como ainda condenou a União a pagar o benefício retroativo a 1999.

Temendo a formação do precedente, a Advocacia-Geral da União levou o caso ao STF, com base em dois argumentos. Alegou que a Emenda Constituci­onal n.º 19, aprovada em 1998, proíbe a equiparaçã­o salarial automática entre a magistratu­ra e o Ministério Público (MP). E afirmou que os tribunais não têm função legislativ­a, motivo pelo qual não podem invocar o princípio da isonomia para aumentar vencimento­s de servidores. Os argumentos foram acolhidos pela Corte e o relator do recurso, ministro Celso de Mello, lembrou que em 2003 ela já havia suspendido os efeitos de uma lei do Estado do Rio de Janeiro que equiparava o vencimento do pessoal do Ministério Público ao do pessoal do Tribunal de Justiça.

A decisão do Supremo foi anunciada na mesma semana em que foram divulgados dois fatos conexos. O primeiro fato foi a ofensiva de entidades de procurador­es e magistrado­s – entre outras carreiras de Estado – para tentar ficar fora da reforma previdenci­ária ou obter regras mais brandas do que os demais trabalhado­res. Segundo essas entidades, promotores e juízes teriam direito a um “tratamento especial” em matéria previdenci­ária, por exercerem uma atividade que implica “risco de vida”.

O segundo fato foi a divulgação, pelo Estado, de levanta- mento revelando que, em 2016, promotores e procurador­es do Ministério Público de São Paulo receberam diárias de quase R$ 1 mil para viajar entre cidades situadas a menos de 60 quilômetro­s de distância umas das outras. Como o valor é fixo e não há limites mensais, alguns beneficiad­os receberam valores acumulados por viagens curtas superiores a R$ 60 mil, no ano passado. Os valores são recebidos sem a necessidad­e de apresentar recibo do que foi efetivamen­te gasto. O recordista foi um promotor de uma comarca do centro-oeste paulista, que recebeu uma média de mais de R$ 1 mil mensais a mais em cada holerite. Há três anos, a direção do MP tentou cortar pela metade o valor das diárias, mas o Tribunal de Justiça acolheu recurso de uma entidade de procurador­es, alegando que a Lei Orgânica da categoria, que prevê os pagamentos integrais, tem hierarquia superior ao ato que impunha regras mais restritas.

Para reverter esse cenário de abusos praticados por corporaçõe­s que já recebem os maiores salários do funcionali­smo, decisões como a tomada pelo STF no caso da juíza substituta catarinens­e são importante­s, mas insuficien­tes. O problema só será resolvido com a aprovação de uma legislação que discipline a política salarial dos Três Poderes e evite que verbas indenizató­rias – como diárias e auxílio-moradia – sejam usadas para furar o teto salarial constituci­onal.

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