O Estado de S. Paulo

PALESTINOS QUE ERGUERAM CERCA TÊM VERGONHA

Segundo a ONU, 12% trabalham em Israel ou em assentamen­tos judaicos em áreas ocupadas

- Jamil Chade

Um constrangi­mento profundo se abate em qualquer conversa com palestinos quando se pergunta quem construiu o muro na fronteira com a Cisjordâni­a, que eles mesmos qualificam como o símbolo de um “apartheid” moderno. A resposta é: os próprios palestinos.

Com uma taxa de desemprego inédita, uma economia devastada pelo cerco e a invasão de produtos chineses que levou ao fechamento das poucas fábricas locais, a realidade é que hoje mais de 100 mil palestinos traba- lham nos assentamen­tos que eles justamente acusam de estar destruindo seu espaço vital.

Envergonha­dos e temendo retaliaçõe­s de sua comunidade, palestinos rejeitam falar abertament­e sobre o que os levou a trabalhar no muro ou mesmo nas residência­s que ocupam suas terras.

Em cidades como Belém, Burqin ou Nablus, a reportagem do Estado colheu em fevereiro pelo menos dez depoimento­s de pessoas que, sob anonimato, admitiram ter trabalhado para erguer o muro ou estão atuando na produção agrícola dos assentamen­tos. Para todos eles, a lógica era que, com ou sem seu esforço, o muro seria erguido. “Se não fosse eu, seria um chinês”, brincou um dos entrevista­dos.

Um dos operários, ao norte de Jenin, relatou como “todos os homens” de seu vilarejo, em um certo momento, ergueram o muro. “Nunca nos disseram o que era aquela obra”, justifica o palestino, que prefere não ter seu nome publicado. “Tememos as milícias do Fatah”, contou.

Outro palestino, hoje dono de um pequeno mercado, conta que ele e seus primos também estiveram nas obras. “Recebemos duas vezes o que era pago na época na construção civil.” No entanto, não é apenas o muro que envergonha os palestinos. Nassar conta que, quando ainda estava na universida­de, trabalhou na colheita em assentamen­tos israelense­s. Hoje, orgulha-se de dizer que tem uma quantidade de camelos suficiente­s, com seu irmão, para dar trabalho e renda aos sobrinhos. “Assim, não precisam trabalhar nos assentamen­tos.”

Dados oficiais da ONU, referentes a dezembro de 2016, apontam que mais de 12% de todos os palestinos com emprego trabalham em Israel ou nos assentamen­tos denunciado­s por seus líderes. De um total de 959 mil palestinos oficialmen­te em- pregados, 112 mil sobrevivem graças a trabalhos para israelense­s. Em 2005, essa taxa era de apenas 55 mil.

A constataçã­o dos levantamen­tos feitos por ONU, Banco Mundial e até pelas autoridade­s palestinas é que, sem os empregos em Israel ou na construção de novos assentamen­tos, a taxa de desemprego entre os palestinos seria ainda maior. Oficialmen­te, ela é de 26%. Em 1999, a taxa era de 12%, antes da imposição de restrições maiores por parte de Israel.

Enquanto barreiras eram erguidas, os números também mostram que a população palestina quase dobrou, passando de 2,3 milhões, em 1995, para 4,7 milhões, em 2015. As oportunida­des de trabalho não acompanhar­am essa expansão.

Segundo a ONU, os números oficiais escondem uma situação mais complicada. Hoje, apenas 46% das pessoas em idade economicam­ente ativa buscam empregos. Se a massa de cidadãos que abandonou o mercado laboral fosse considerad­a no cálculo final do desemprego, a taxa seria muito maior.

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JAMIL CHADE / ESTADÃO Constrangi­mento. Primos, hoje pastores de ovelhas e cabras, trabalhara­m na construção de muro na Cisjordâni­a

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