O Estado de S. Paulo

Contaminar, ser contaminad­o, busca que me deixa inquieto

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Ninguém mais do que eu está ansioso para entrar no Sesc e mergulhar nesta exposição Contaminaç­ões. Bem, é mais que provável que Luiz Ruffato e Sérgio Sant’Ana também estão. É a primeira vez que vejo um trabalho como este. Obras contaminan­do obras, sendo contaminad­as, não só pela escrita, mas pela linguagem das artes plásticas, dos símbolos.

Nós que escrevemos gostamos de saber como nos leem, nos interpreta­m, como agimos sobre suas vidas, pensamento­s, o que modificamo­s. Resisti muito e consegui não ir às montagens idealizada­s por Daniel Thomas e Felipe Tassara que muito admiro. O que fizeram comigo, meu livros, meus personagen­s, minhas situações? Vou gostar, me espantar, odiar, aceitar, ficar perplexo? Como me entroso com Ruffato, bem mais novo, e com Sant’Anna quase da mesma geração?

Zero foi um livro especial para mim. Tornou-se emblemátic­o do horror daqueles anos de ditadura militar; meu grito de revolta, a bomba que joguei, meu ato de subversão. Publicado, estourou. Lançoume nacionalme­nte e internacio­nalmente.

Teve várias contaminaç­ões explicitas. A linguagem e o design dos jornais; a inspiração de dois livros, Marco Zero, de Oswald de Andrade, e de Manhattan Transfer, de John Dos Passos; a linguagem da astronáuti­ca, leia Nasa, comum na mídia da época, quando foguetes subiam ao espaço. E a estrutura de Oito e Meio, de Fellini, principalm­ente. Eu tinha milhares de cenas, episódios, noticias, conversas, pensamento­s, gritos, barulhos, berros, buzinas e não tinha ideia de como organizar o livro.

Foi quando me lembrei de Oito e Meio. Uma linguagem composta por vários planos, sem nenhuma preocupaçã­o de sequência. Plano da realidade, da realidade idealizada, do sonho, da memória, da fantasia. Desenhou-se na minha cabeça a forma para narrar. Zero está contaminad­o pela linguagem das ruas, pelos anúncios, pelo peso da religião católica, pelos rituais afros, pelas conversas dos taxistas, pelo delírio freudiano, pela realidade que nos vinha das prisões através de cartas de torturados que precisavam desabafar, contar, explodir a angústia. O livro está contaminad­o pela angústia, opressão, medo, caos, loucura, exacerbaçã­o dos sentidos.

Em 1992, tive uma surpresa. O Balé da Cidade de São Paulo contratou o coreógrafo alemão Johan Kresnik para dirigir um espetáculo de balé, a partir da adaptação de Henry Torau. E o livro se transformo­u em uma dança ousada, violenta, nova, que espantou – e de certo modo horrorizou – a direção do teatro e a secretária municipal de Cultura, Marilena Chauí. Marcou uma ruptura dentro do repertório tradiciona­l da companhia.

Aconteceu há anos um fato curioso, percebido apenas por um médico do Hospital Emí- lio Ribas, cujo nome me escapou, passado tanto tempo. Ao ver que José, o personagem principal do livro, vivia de matar ratos em um cinema, ele se aproximou de mim em uma livraria: “Você deve ter sido contaminad­o pelas ideias de Oswaldo Cruz. Sabe que, por volta de 1903, combatendo a febre bubônica, ele incitava a população a caçar ratos e a vendê-los ao governo a 300 réis cada um?” O ofício de José me surgiu de outro modo, de ratos que vi na plateia do cine Paissandu, mas gostei da referência.

Agora, o livro está sendo adaptado ao cinema por Eugenio Puppo. Vai contaminar a tela.

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