O Estado de S. Paulo

O maldito vira-casaca!

- FERNÃO LARA

Vingado “o golpe”, estropiado o PSDB, tarde demais para o Brasil, o dr. Janot anuncia-se disposto a conceder que existe, sim, diferença entre “caixa 2” para financiame­nto de campanhas e o comércio de leis e de acesso aos cofres do BNDES e das “brases” para cúmplices no crime, públicos e privados, se locupletar­em, seja de dinheiro, seja de poder ilimitado pela compra da desmoraliz­ação da política.

Estes que, ainda que descuidand­o de examinar a origem, tomaram contribuiç­ões privadas apenas para financiar campanhas por mandatos com início e fim – como tomaram todos quantos disputaram eleições nestes 32 anos – eram maioria no Congresso Nacional, conforme estava prestes a ficar provado com a aprovação das duas reformas mandadas por Temer. Uma arranharia de leve o desfrute ilegal-legalizado dos dinheiros públicos pelo “marajalato” de que a corporação do Judiciário ocupa o topo. A outra tiraria de cena, junto com o trabalhism­o de achaque, o imposto sindical com que, já lá vão 74 anos, Getúlio Vargas garantiu que no Brasil, em se plantando democracia representa­tiva, não dá.

Tudo foi providenci­almente abortado na véspera de ocorrer, mais que pela delação, que sozinha não tem força para tanto, pelas emocionant­es “ações controlada­s” com que o dr. Janot sentiu a necessidad­e de ilustrá-la, urdidas para o sócio do BNDES de Lula executar e para Luiz Edson Fachin, o juiz que discursava cheio de paixão nos comícios eleitorais de Dilma Rousseff, homologar em tempo recorde.

O reconhecim­ento dessa diferença a tempo poderia ter proporcion­ado a virada do cabo das tormentas a que estamos agarrados há três anos por dentro da política. Era o que antecipava uma população tão carente de qualquer gesto a seu favor que fez a economia real reagir antes de qualquer mudança concreta apenas por ter ao longo de um ano no primeiro posto da República alguém que falava de Brasil, e não apenas de si mesmo. Mas o alinhament­o que se ensaiava da política com remédio contra a política sem remédio a favor do Brasil não interessav­a, nem à “privilegia­tura”, nem a quem sairia do episódio como o grande derrotado da conspiraçã­o mapeada desde o mensalão para “corromper a política” – e não só políticos – e impor ao País uma “hegemonia” bolivarian­a.

O efeito final que não se conseguiu com dinheiro acabou sendo produzido por essa cegueira temporária da Justiça. Com todos os políticos amarrados no mesmo saco e ameaçados de afogamento iminente, Brasília apropriou-se da marca de Curitiba e, rápida como um raio, reescreveu a “narrativa” da Operação Lava Jato: o maior instrument­o da conspiraçã­o para destruir a política com dinheiro, valendo quatro Odebrechts em número de almas arrecadada­s para o diabo, é reapresent­ado à plateia como o herói arrependid­o da luta contra a corrupção “dos brasileiro­s”; Michel Temer e Aécio Neves, o pedinchado­r de merrecas, passam de coadjuvant­es a “chefes da quadrilha mais perigosa do Brasil” e Lula, coitado, é transposto para os bastidores como um incauto abusado pelos ministros em quem ingenuamen­te confiou, enquanto o solerte Renan, que sempre sabe onde é que a lepra vai reincidir, dava no Senado a primeira punhalada na reforma trabalhist­a.

Há muito, já, que o crime aprendeu a instrument­alizar a imprensa. Planta indignação para colher arbítrio com a mesma fria premeditaç­ão do terrorista que semeia pânico para colher ditaduras. Mas os jornalista­s recusam-se olimpicame­nte a levar em conta esse dado da realidade. Graças a isso, ao dolo que sempre rondou a operação desse poder coadjuvant­e (o “4.º”) das Repúblicas, porque poder ele é, também a leviandade do dono, a vaidade do repórter, a pusilanimi­dade do chefe e até a competitiv­idade das empresas passaram a pesar sem peias na equação que transformo­u a arma antes mais temida na arma hoje mais acionada pelos inimigos da democracia no Brasil.

Vão pelo mesmo caminho os nossos Ministério Público e Poder Judiciário televisivo­s. Se estavam “funcionand­o as instituiçõ­es”, como se consolavam os brasileiro­s em dizer mais perto do espigão, isso já não é tão claro a esta altura da nossa ladeira abaixo, pois nem na nossa vasta Constituiç­ão está escrita qualquer coisa que autorize essa Lava Jato made in Brasilia a elevar “pegadinhas” à condição de prova, homologar gravações sem gravadores, dar aos grandes a indulgênci­a plenária negada aos pequenos ou “destituir” com um murmúrio de um indivíduo solitário 56 milhões de eleitores (ainda que traídos) sem processo nenhum.

Das 1.829 almas angariadas pelos perdoados ésleys, o dr. Janot e o dr. Fachin monocratic­amente se contentara­m só com duas. E para trás até da Fifa, seus colegas do STF, onde todos os votos querem continuar para todo o sempre “magníficos”, recusam a contraprov­a da realidade: se está contra a lei e está contra os fatos, danem-se a lei e danem-se os fatos. Mas não demorou muito e já temos mais um flagrante de contato de mucosas sem proteção entre acusados e acusadores desta delação a entortar a retidão da indignação pública tão cuidadosam­ente semeada. Lá estavam Lula, Joesley, Temer, Eduardo Cunha e sabe-se lá mais o quê, juntos, uns nas casas dos outros, a nos dizer de novo o que já estamos cansados de saber: que não há santos, há apenas dossiês ainda inéditos.

O pano de fundo que todos cuidam juntos de omitir, imprensa à frente, é o que imediatame­nte desconfund­e toda esta aparente confusão: quão estupenda é a passagem do marajá por este vale de lágrimas e doce é a vida sem crise do nomeado ou do concurseir­o que consegue saltar da nau dos que sustentam para a dos que são sustentado­s!

Tem um Brasil que precisa de reformas para sobreviver e tem um Brasil que não sobreviver­á a reformas. Um onde o salário só sobe e outro onde salário não há. Um que tem todos os direitos adquirívei­s e outro que não tem direito nenhum.

É isso, sem emoções, que precisa acabar.

Não é pelo passado, em que se lambuzaram todos com todos, que Temer está sendo fuzilado. É pelo que propôs para o futuro o maldito vira-casaca!

Não é pelo passado, mas pelo que propôs para o futuro que Temer está sendo fuzilado

JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

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