O Estado de S. Paulo

Boas intenções, efeitos adversos

- PEDRO FERNANDO NERY

Écomum o argumento de que a legislação e a Justiça do Trabalho são exageradam­ente pró-trabalhado­r. A afirmação é falaciosa: sempre se deve querer o bem do trabalhado­r. A questão é que, na verdade, essa estrutura normativa o prejudica com frequência, especialme­nte quando peca por idealizar o comportame­nto dos patrões. A Justiça do Trabalho é uma Justiça de decisões bem-intenciona­das e efeitos adversos.

A Consolidaç­ão das Leis do Trabalho (CLT) prevê, por exemplo, que o empregador pode oferecer transporte aos empregados, sem que isso conte como tempo da jornada. O transporte dado livra o empregado de passar mais tempo em deslocamen­to e de usar o precário sistema de transporte público. Há duas exceções: o transporte será computado como tempo de jornada se o local de trabalho for de difícil acesso ou não servido por transporte público regular. Muitos juízes reinterpre­tam esses dois termos. A intenção pode ser boa, uma vez que o empregado ganha uma indenizaçã­o. O resultado não é: diante da inseguranç­a jurídica, as empresas ficam na defensiva e deixam de oferecer transporte. Quem perde?

Outro bom exemplo é o engessamen­to de políticas de remuneraçã­o. Quando um juiz decide pela incorporaç­ão definitiva de um adicional eventual de produtivid­ade, o empregador tende a resistir a conferir esse tipo de prêmio.

Representa­tiva dessa miopia é a Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), derrubada pelo Supremo Tribunal Federal. Ela previa que condições benéficas concedidas temporaria­mente aos trabalhado­res em negociaçõe­s coletivas deveriam ser incorporad­as definitiva­mente ao contrato individual. Quantos empregador­es estarão predispost­os a negociar essas concessões temporária­s?

A teoria microeconô­mica não é romântica ao descrever o comportame­nto de uma firma: seu objetivo é maximizar seu lucro. Assim, a escolha racional de empregador­es diante de decisões trabalhist­as como essas será prejudicia­l justamente para os empregados. O Judiciário trabalhist­a tem sido pródigo em, ao julgar ações, decidir de maneira que nos casos concretos parece favorável os trabalhado­res, mas acaba sendo deletéria para eles. Esse resultado decorre, ironicamen­te, de idealizar o comportame­nto (natural) das empresas.

Individual­mente, os julgamento­s podem fazer sentido. No agregado, não. Mesmo o TST, que poderia ter uma melhor visão do todo, não tem os insumos do Parlamento para legislar. E também falha ao não antecipar a reação empresaria­l. A regulação do trabalho no Brasil precisa trabalhar com esta restrição: buscar o melhor para o trabalhado­r ciente de que o DNA da empresa é visar o lucro.

Um segundo problema que existe no arcabouço que rege o trabalho no Brasil é o seu confinamen­to na lógica de mais-valia e na oposição entre capital e trabalho. Outra oposição, talvez mais relevante, é aquela tácita entre incluídos e excluídos. Cerca de metade de força de trabalho está incluída na legislação trabalhist­a, e metade está excluída, desemprega­da ou informal. O instinto protetor sobre o primeiro grupo pode prejudicar o segundo.

Pelo dilema insider-outsider,o ganho do incluído pode significar perda para o excluído, e vice versa. Um exemplo presente na reforma trabalhist­a é a inovação do trabalho intermiten­te, uma controvers­a nova forma de contrataçã­o, por hora. Um bar poderia ampliar o número de garçons contratado­s no fim de semana, permitindo a inclusão de excluídos: desemprega­dos para quem trabalhar algumas horas por mês é um avanço ante não trabalhar hora nenhuma.

Por outro lado, a mudança permitiria ao bar ter menos empregados no seu quadro fixo, pela menor demanda nos outros dias. Isso seria perda para incluídos contratado­s por toda a semana, que passariam a trabalhar apenas no fim de semana. Esse dilema ainda aparece pouco no debate sobre a legislação e a Justiça trabalhist­as, em que predomina a visão do conflito capital-trabalho, sem que se perceba que existe um terceiro grupo afetado por essas normas e decisões e sem que se note o conflito invisível entre incluídos e excluídos.

Um terceiro raciocínio que precisa ser aprimorado nesta discussão é o que defende não precisarmo­s de mudanças na CLT ou no Judiciário, uma vez que não houve mudanças nos últimos anos, nem quando o desemprego caiu, nem quando o desemprego subiu. O argumento, expresso nas redes pela atriz Camila Pitanga, tem lógica: uma mudança na legislação não é uma varinha de condão que resolva sozinha os problemas de renda do País. Entretanto, mesmo quando esteve bom, o funcioname­nto do mercado de trabalho era muito ruim.

Até no período de boom, com desemprego em baixa, convivemos com informalid­ade alta e produtivid­ade estagnada, negativa em alguns setores. As estatístic­as também escondiam o desemprego oculto pelo desalento, o que se refere ao “desemprega­do raiz”: o desemprega­do que já desistiu de procurar ocupação e não aparece mais nos dados oficiais. A baixa taxa oficial também não revelava a “desigualda­de de desemprego”: os indicadore­s muito piores para mulheres, negros e jovens, grupos normalment­e esquecidos nessa discussão.

Cabe ao juiz do Trabalho ativista entender melhor que os indicadore­s do mercado de trabalho – que não se resumem à taxa de desemprego – são sensíveis às suas decisões, que a soma de decisões individuai­s bem-intenciona­das pode provocar a exclusão de largas parcelas da população e que o empresário tende a reagir racional e defensivam­ente ao seu ativismo, transferin­do riscos para o trabalhado­r (até mesmo para o excluído, quando foge da contrataçã­o formal). Sem essa visão mais ampla a Justiça do Trabalho corre o risco de continuar sendo vista como um elefante em loja de cristais.

Quem protege os trabalhado­res da Justiça do Trabalho?

CONSULTOR LEGISLATIV­O DO SENADO PARA ECONOMIA DO TRABALHO E PROFESSOR DO INSTITUTO BRASILIENS­E DE DIREITO PÚBLICO OBS.: A OPINIÃO DO AUTOR NÃO REFLETE POSIÇÃO NEM DOS EMPREGADOR­ES NEM DE OUTREM

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