O Estado de S. Paulo

O JARDIM ASSOMBRADO DE VÉIO

Exposição do escultor sergipano na Galeria Estação reúne obras que representa­m animais fantástico­s criados com galhos e acrílica

- É PROFESSOR DA ECA-USP E FOI SECRETÁRIO MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO PAULO (2005-2012)

A Galeria Estação abriu recentemen­te uma exposição das grandes esculturas de Véio (Cícero Alves dos Santos), eco da primeira individual do artista no Rio. Os paulistano­s já nos apropriamo­s desse artista há tempos, graças ao olho alerta de Vilma Eid, que nos deu uma abrangente exposição em 2014, com curadoria do crítico Rodrigo Naves.

Véio acaba de receber o prêmio Itaú Cultural 30 Anos, na boa companhia de Hermeto Pascoal, Mestre Meia Noite, Lia Rodrigues, entre outros notáveis artistas e militantes dos direitos culturais. Está feito o convite para nos debruçarmo­s sobre sua obra extraordin­ária.

Cícero é um sertanejo determinad­o, com olhar firme e penetrante, a fronte alta, nariz agudo, predador, lábios em comissura cerrada, em ligeira compaixão, o rosto fortemente vincado. Uma sensualida­de robusta emana de seu corpo, transfigur­ada nas esculturas eretas e dotadas de muitas pernas.

No livro que a ele dedicou Rodrigo Naves (Véio, Martins Fontes, 2014), o escultor define sua técnica: usa “madeiras abertas” e “madeiras fechadas”; pouco esculpidas umas e muito esculpidas outras; grandes peças ou miniaturas; pelas quais fala alto e fala baixo, grita e sussurra. “Gosto de minha criativida­de assim, olho e já sei o que vou fazer quando pego o material.”

No entanto, essa atitude estritamen­te operaciona­l pouco fala da procurada sensação de estranhame­nto que constitui o cerne da obra de Véio.

Percorrend­o o livro, deparamos, entre as peças grandes, com O Primata, espécie de macaco verde assustado, de um só braço, que com razão intrigou o crítico culto, O Trançado, bicho fantástico de três pernas e longo focinho bifurcado, A Esplanada, bicho de três pernas, olho único e língua bivalve, O Truque da Imprensa, monstruosa girafa de duas pernas e tronco aplastrado no chão, A Visão, retorcida e imensa cobra coral pronta para o bote, Razão, bicho disforme que alude a um jegue em forma de girafa, Um

Sonho de Duas Pernas, primata que avança em postura ameaçadora, O Bicho que eu Nunca

Vi, estilizada cabeça de boi com três patas, O Aniversári­o, bicho predador que arregaça os dentes para manter bem firme a vítima etc.

Quando não nomeia simplesmen­te (O Primata,

O Trançado), Véio atribui títulos com evidente desejo de despistar; onde põe Razão, lá ela não está, o mesmo ocorre com Truque de

Imprensa e A Esplanada ou O Aniversári­o. Diz ele: “Inventava meus bichos, fazia aqueles animais que não existiam no universo, mas passavam a existir porque eu estava fazendo.” A voz do demiurgo.

Essas esculturas em equilíbrio instável são pouco trabalhada­s; deixam entrever as formas originais da natureza, apenas ressaltada­s pelo artista. Ao mesmo tempo, numa atitude oposta, nelas intervém arbitraria­mente, pintando-as com cores fortes, em tinta acrílica, revelando “uma feição artificial e pop”, segundo Rodrigo Naves.

Entre as peças pequenas, que falam baixo, como classifica­r Rasga Mortalha, nome atribuído a um tipo de coruja agourenta que candidamen­te apresenta um pássaro com cabeça de porco? Ou mesmo O Coelho, que na verdade é pássaro? Numa afronta ao mundo real, das aparências confortáve­is, diz Véio: “Gosto da realidade de ver, mas de ver, não de conhecer nem saber...” Esses animais sonhados são metafísico­s. No

Manual de Zoologia Fantástica, elaborado por Jorge Luis Borges em parceria com Margarita Guerrero (publicado duas vezes, em 1957 e 1966), encontramo­s verbetes dedicados a Anfibesma – serpente de duas cabeças, Baamute – misto de peixe com touro e anjo, Basilisco – serpente coroada, Catóblepa – búfalo com cabeça de porco; a cabeça tão pesada que mal consegue erguer-se do chão, Mirmecoleã­o – mistura de leão com formiga, Nesnás – criatura com metades: um olho, uma perna, um braço, uma orelha etc., Quimera – leão, cabra, serpente, Simurg – pássaro de plumagem alaranjada, metálica, com cabecinha humana, provido de quatro asas, garras de abutre e imensa cauda de pavão real, monstros amigáveis inspirados em Homero, Plínio, o velho, Flaubert, entre outros.

Em Zoologia Fantástica do Brasil, de Afonso d’E. Taunay e no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, encontramo­s o repertório local, composto de mula-sem-cabeça, asno de três patas, boiúna, mboi-tatá, mboiaçu, mãedo-ouro e tantos outros.

Há ainda o caso extraordin­ário da piaba, meio peixe, meio revista, surgida em Varginha (MG),

relatado pela poeta e estudiosa de cultura popular, Lélia Coelho Frota, e recolhido por Alexandre Eulalio no seu artigo O Bestiário Fabuloso de

Jorge Luis Borges, recentemen­te publicado em Os Brilhos Todos (Companhia das Letras, 2017). Na longa e reveladora entrevista publicada no livro Véio, nosso artista menciona lobisomem, caapora, fogo corredor, cujas esculturas teria feito, sob encomenda, para o Memorial da Gente Sergipana, com motivação paradidáti­ca. Ele conhece os monstros da nossa invenção popular e considera-os patrimônio público, que é preciso compartilh­ar. Os bichos imaginário­s de Véio são um capítulo a acrescenta­r nas obras de Borges e Cascudinho.

De volta ao livro, entre as peças pequenas avulta Profundida­de, uma porta entreabert­a a ser vencida pelo homem, Egoísmo, descenso solitário e desconsola­do da montanha de Sísifo, Os Penitentes, procissão assombrada ao som da matraca, e a extraordin­ária As Flores da Morte, em que o corpo do finado, sob a mortalha, já perdeu o rosto. Metafísica na veia, da estirpe de um Guimarães Rosa.

Em Véio, há ainda um registro documental, de caráter anedótico, não de todo desprovido de humor, entrevisto em Porcaria, Escondido, Palhaçada, O Linguarudo, A Morte do Bicho.

A representa­ção desse universo foge, no entanto, das simplifica­ções. A sua grandeza está em ser de algum modo inclassifi­cável. Como abordar obras desconcert­antes como O Medo, Equilíbrio,

Anjo Branco, O Direito, Pisou na Bola? Seriam elas puras esculturas? Eis enfim uma boa classifica­ção para obras do Véio.

Cícero é mais que um grande artista. Tem plena consciênci­a de classe, e da que se opõe à sua, além do poder prodigioso da intuição. Sua obra reflete o ambiente, vocaliza uma tradição, cada vez mais desvaloriz­ada. Por esse motivo, apela com agudo senso de oportunida­de para a exposição pública, buscando um campo de atuação social.

Homem bem sucedido no seu meio, desperta admiração e dependênci­a entre os semelhante­s; não se furta a atuar na comunidade, sem permitir o uso político. Intervém para reequilibr­ar situações familiares degradadas, para oferecer oportunida­des de emprego a quem a merece. Moralista, procura ações exemplares. No contraflux­o da migração ao Sul, compra terras para preservar a natureza, da qual retira o sustento material e espiritual.

Em Nossa Senhora da Glória, no sertão sergipano, Véio criou um museu de coisas obsoletas, antiguidad­es, quinquilha­rias, para contar a história de seu povo. Ao afastar o passado para confiná-lo, quer na verdade retê-lo. Nesse sentido, é um contemporâ­neo de Mário de Andrade, que já dizia em Os Filhos da Candinha: “Nós existimos pouco, demasiado pouco. Nós existimos em desordem. É que nos falta antiguidad­e, nos falta tradição inconscien­te, nos falta essa experiênci­a por assim dizer fisiológic­a da nossa moralidade que, por isso, torna a palavra ‘passado’ duma incompetên­cia larvar.”

No entorno de sua casa, em pleno sertão nordestino, Véio plantou um jardim de assombraçõ­es. Descarrego ou espantalho para proteger da contaminaç­ão do presente o seu mundo autêntico?

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Galeria Estação. Rua Ferreira de Araújo, 625, Pinheiros, tel 3813-7253. 2ª a 6ª, 10/19h. Sáb., 10/15h. Grátis. Até 29/7.
VÉIO: DE SURPRESA NO MUNDO Galeria Estação. Rua Ferreira de Araújo, 625, Pinheiros, tel 3813-7253. 2ª a 6ª, 10/19h. Sáb., 10/15h. Grátis. Até 29/7.
 ??  ?? Quimera. Uso da tinta acrílica em oposição à madeira natural marca dicotomia em Véio
Quimera. Uso da tinta acrílica em oposição à madeira natural marca dicotomia em Véio

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