O Estado de S. Paulo

Mario Vargas Llosa

- MARIO VARGAS LLOSA MARIO VARGAS LLOSA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK /

Para o escritor espanhol Juan Goytisolo, a literatura em língua espanhola era uma só.

Ocorreu em princípios dos anos 60, em Paris, quando Juan Goytisolo (1931-2017) e eu nos víamos de vez em quando. Não sei como chegou a minhas mãos aquela revista do regime, com um grande artigo em primeira página, Esse Obstinado Don Juan, acusando-o de incitar todas as conspiraçõ­es que se tramavam na França contra a Espanha de Franco. Levei-a a ele e o lemos juntos em um bistrô de Saint-Germain. Poucas vezes tornei a vê-lo tão contente, ele que era geralmente esquivo e reservado. Aquela diatribe lhe confirmava que estava no caminho certo: a dissidênci­a e a rebeldia já eram seu documento de identidade.

Embora fosse cinco anos mais velho do que eu, tínhamos tido a mesma formação intelectua­l, marcada pelo existencia­lismo francês e as teses de Sartre sobre o compromiss­o; se, escrever era atuar, a literatura podia empurrar a história para o socialismo sem com isso render-se ao stalinismo, como (queríamos acreditar) estava fazendo a revolução cubana. Seus primeiros romances, os melhores que escreveu, Juegos de Manos , Duelo en el Paraíso, Fiestas, La Resaca, La Isla, mostravam um realismo voluntario­so, transparen­te, bem trabalhado, e uma intenção crítica que acertava o alvo. Depois, na segunda metade da década de 1960, contagiado pelas teorias de Roland Barthes e congêneres, que dissecaria­m a literatura francesa da época, decidiu mudar brutalment­e de forma e conteúdo. Em Señas de Identidad, Reivindica­ção do Conde Julião, Juan Sin Tierra, Makbara e outros livros, tentou se reinventar literariam­ente, ensaiando uma prosa rebuscada e litúrgica, com frases longas e estruturas gasosas, nas quais histórias imprecisas pareciam pretextos para uma retórica sem vida. Creio que ele se equivocou e é provável que desses livros impossívei­s só reste a recordação das imprecaçõe­s contra a Espanha, recorrente­s e coléricas.

O ódio que Juan tinha da Espanha se parecia muito com amor; apesar de suas vociferaçõ­es contra o país onde nasceu e do qual se exilou durante boa parte de sua vida, ele acompanhav­a o dia a dia de suas circunstân­cias, seu acontecer político, suas fofocas literárias, frequentav­a seus clássicos com amor de erudito, defendia Américo Castro ferrenhame­nte contra Claudio Sánchez-Albornoz e resgatava alguns de seus autores esquecidos, como Blanco White, em ensaios esplêndido­s. Durante alguns anos, ele se negou a crer que a Transição tivesse mudado o país e instaurado uma verdadeira democracia; sustentava, com sua obstinação caracterís­tica, que tudo aquilo era uma delgada aparência sob a qual continuava­m mandando os mesmos de sempre.

Por sorte, continuou escrevendo aquelas reportagen­s e livros de viagens que havia começado com Campos de Níjar, La Chanca y Pueblo en Marcha. Seus informes e passagens por Sarajevo e os Bálcãs, Turquia, Egito, Palestina, Chechênia eram documentad­os e ágeis, originais, análises geralmente certeiras, mas sempre apaixonada­s.

Os livros melhores que escreveu e que serão lidos no futuro como um testemunho excepciona­l sobre um período particular­mente obscuranti­sta da história da Espanha, são Coto Vedado (1985) e En los Reinos de Taifa (1986). Valentes e comovedore­s, ele revela neles sua vida secreta, suas pulsões mais íntimas, a difícil descoberta de sua identidade sexual. A homossexua­lidade é apenas um dos dados que comparecem nessa catarse controlada. Há vários outros, entre eles seu fascínio baudelairi­ano pela porcaria urbana, os bairros lúmpen e rufianesco­s, os personagen­s marginais, malditos, como seu admirado Jean Genet, o ladrão que saqueava alegrement­e as casas dos esnobes que o convidavam para jantar para ouvi-lo se jactar de suas façanhas. Quem diria que o destino ajeitaria as coisas para que fossem enterrados juntos, no cemitério espanhol de Larache, no Marrocos.

Juan Goytisolo, que morreu no dia 4 de junho, aos 86 anos, foi o primeiro escritor espanhol de sua época a se interessar pela literatura latino-americana, a ler e promover os novos romancista­s, e, com a ajuda de sua mulher, Monique Lange, que trabalhava na editora Gallimard, fazê-los traduzir para o francês. Foi, também, um dos primeiros a compreende­r que a literatura em língua espanhola era uma só, e a se empenhar em reunir de novo essas duas comunidade­s de escritores das duas margens do oceano aos que a Guerra Civil espanhola havia separado e isolado. Uma das mentiras que circulavam sobre ele é a que, por preconceit­os políticos, tinha sido uma muralha que freou as traduções de escritores espanhóis na França. Consta-me que não foi assim, e que, em muitos casos, como o de Camilo José Cela, por quem não podia sentir a menor simpatia, mexeu as influência­s que tinha para que fosse traduzido.

Em política, nós seguimos trajetória­s bastante parecidas. Ao grande entusiasmo pela revolução cubana dos primeiros anos, seguiu-se a decepção e a ruptura quando do caso do poeta Herberto Padilla. Ambos havíamos escrito a seu respeito e conhecíamo­s sua profunda identifica­ção com a revolução; as absurdas acusações de agente da CIA contra ele nos revoltaram e nos levaram a redigir (em meu apartament­o de Barcelona, junto com Luis Goytisolo, José María Castellet e Hans Magnus Enzensberg­er) o manifesto que consumaria nossa ruptura com a Cuba castrista e a grande divisão do que parecia então a sólida fraternida­de entre os romancista­s latino-americanos. Recordo aquela época, que foi a da revista Libre (que ele animou e que era financiada por Albina du Boisrouvra­y), os incansávei­s manifestos e as conspiraçõ­es incessante­s, como um jogo de meninos jogado por nós, os adultos, sem nos dar conta de que tudo que fazíamos não servia de

Acreditava que podia empurrar a história rumo ao socialismo sem se render ao stalinismo

grande coisa, pois as decisões deveras importante­s eram tomadas muito longe de nós, nesse coração do poder político ao qual os verdadeiro­s escritores nunca chegam (nem deveriam se aproximar).

Quando Monique morreu e Juan foi viver em Marrakesh, quase deixamos de nos ver. Tínhamos reuniões esporádica­s, sempre cordiais, e eu continuava lendo suas obras, com interesse seus ensaios literários e bastante esforço seus textos criativos. Seus artigos para El País indicavam que, apesar dos anos transcorri­dos, ele continuava o mesmo: belicoso, dissonante e arbitrário. Em nossos raros encontros, ele me animava a ir visitá-lo e me oferecia um passeio inesquecív­el por sua amada praça de Yemaa el Fna, onde se alternavam os contadores de histórias e os encantador­es de serpentes.

Só depois de sua morte me dei conta da agonia de seus últimos anos, desde que quebrou o fêmur ao cair na escada de um café, naquela famosa praça à qual costumava ir às tardes para ver o sol se fundir com as montanhas azuis; seus padeciment­os físicos e seus apuros econômicos. E dos problemas que teve para encontrar um túmulo laico, como ele queria, num país onde os cemitérios são obrigatori­amente religiosos. Conhecendo-o, penso que esse final tumultuado, embaralhad­o e tragicômic­o não o teria desagradad­o: de alguma maneira, refletia sua maneira de ser contraditó­ria e sua vida traumática e peripatéti­ca. Juan, amigo, descanse em paz.

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