O Estado de S. Paulo

A tradição como argumento de defesa JOSÉ EDUARDO FARIA

- PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (GVLAW)

Conjugadas com o que tem sido confessado com ar de superiorid­ade e de modo finório por empreiteir­os e empresário­s em suas delações premiados, revelando como corrompera­m políticos e compraram medidas provisória­s com o objetivo de definir os marcos jurídicos das áreas em que atuam, as tentativas de anistiar parte do mundo político e colocar o Congresso como contrapont­o à Procurador­ia-Geral da República e à Justiça Federal dão a medida do grau de deterioraç­ão das instituiçõ­es. Dentre os problemas daí decorrente­s, dois merecem destaque.

O primeiro diz respeito ao impacto político e jurídico de uma eventual revisão da decisão do STF que autoriza a prisão de quem foi condenado em segunda instância, obrigando-o assim a recorrer aos tribunais superiores de dentro de uma cela. Se as regras do jogo forem mudadas no desenrolar do próprio jogo para assegurar imunidade a quem se apropriou criminosam­ente de recursos públicos, o direito será relativiza­do como marco referencia­l, compromete­ndo a credibilid­ade das instituiçõ­es judiciais – inclusive o STF. Quando regras são alteradas conforme conveniênc­ias de governante­s e parlamenta­res envolvidos em negociaçõe­s escusas com empresas incapazes de competir sem desonestid­ade, a coerência doutrinári­a do sistema jurídico se rompe. Ele perde sua identidade sistêmica. O resultado é a inseguranç­a jurídica. No limite, uma crise do Estado de Direito.

O segundo problema está associado à percepção desse cenário por investigad­os e delatores. Nos últimos meses, eles alegaram que o caixa 2 faz parte dos costumes da política. Também afirmaram que essas práticas – proibidas por lei – consistiri­am, culturalme­nte, no modelo prevalecen­te de financiame­nto de campanhas eleitorais. Um exministro da Justiça declarou que “caixa 2 em campanhas é recorrente”. Em delação premiada, Emílio Odebrecht classifico­u como natural a captura do poder público por sua empreiteir­a mediante pagamento de propina. Argumento semelhante foi invocado por Joesley Batista. Essas falas evidenciam como a corrupção prostitui mandatos, corrói a ideia de interesse público, erode a noção de direitos e leva à perda da própria concepção de Estado. Ambos prometeram que adotarão princípios éticos e códigos de conduta em seus grupos. Antes de seu depoimento, Emílio divulgou um vídeo no qual afirmava que só terão futuro as organizaçõ­es que se reciclarem e agirem com integridad­e e transparên­cia – iniciativa que só comoveu incautos.

Quando examinada à luz da distinção feita por Max Weber entre as éticas de responsabi­lidade e de convicção, a ideia de que a corrupção é inerente à cultura do País peca por dois vícios. Por um lado, ao afirmar que “sempre se agiu assim”, o pessoal acusado de corromper a representa­ção política e o poder público se esquece de que no Estado de Direito, onde há o predomínio de regras gerais, abstratas e impessoais, as relações socioeconô­micas e políticas deveriam ser travadas sob a égide de uma ética de responsabi­lidade, com base na qual os políticos privilegia­riam interesses coletivos acima de seus interesses pessoais. Ao afirmar que caixa 2 é “prática histórica e cultural”, portanto, banalizada, naturaliza­m a delinquênc­ia sistêmica, pondo interesses pessoais acima dos interesses coletivos com base na ética de convicção, pela qual os fins justificam quaisquer meios. Isso ficou evidente quando Emílio disse que a Carta ao Povo Brasileiro – ato estratégic­o para a vitória de Lula em 2002 – teve contribuiç­ão de sua empreiteir­a.

Por outro lado, quando invoca a ideia de cultura para justificar a apropriaçã­o do poder público por interesses privados, esse pessoal revela astúcia e autoconfia­nça. Para eles, a cultura se limita à recorrênci­a de alguns comportame­ntos. Do mesmo modo que mentiras repetidas mil vezes se convertem em verdade, ilícitos praticados reiteradam­ente perderiam o vício da ilegalidad­e, tornando-se social e eticamente aceitos. Para esse pessoal, não há fronteira entre o legal e o ilegal, o moral e o imoral. Eles são incapazes de perceber que a cultura – que inclui conhecimen­tos, crenças, símbolos, hábitos e expectativ­as comuns de justiça – é um conceito complexo. Além das práticas sociais aprendidas de geração em geração, ela encerra uma relação de força. A aparente diversidad­e de identidade­s valorativa­s e ideológica­s, na dinâmica da política, oculta a dominação de alguns grupos sobre outros, ao mesmo tempo que produz e reforça desigualda­des.

O momento singular que o País atravessa, em decorrênci­a da corrosão do sistema partidário, do esfacelame­nto da autoridade presidenci­al e do escancaram­ento dos esquemas de captura do Estado, exige reflexão sobre o que está em jogo. Há quem aplauda a Lava Jato. Há quem a critique por excesso de judicializ­ação, apoiando a asfixia orçamentár­ia da PGR. Há quem afirme que a corrupção sistêmica só foi possível por causa da fraca institucio­nalidade política, vulnerável a pressões conjuntura­is. Há quem veja as eleições diretas como uma catarse política. Há quem tema que o descrédito dos políticos desestimul­e o eleitorado a investir em lideranças novas e capazes de repensar as funções do Estado e fortalecer a democracia representa­tiva, tornando-a mais resistente à corrupção. São opiniões importante­s. Mas o que causa receio são os desdobrame­ntos da eventual aprovação de uma anistia irrestrita aos políticos. Mais precisamen­te, é o risco de que a repulsa a ela estimule aventuras moralistas em 2018, agravando a perda de substância da democracia.

Afastar esses riscos e reconstrui­r o poder público é um desafio complexo para uma sociedade que sempre teve dificuldad­e de articular o econômico e o social com o político. A política, dizia Weber, é um “esforço tenaz, que exige paixão e senso de proporções, para atravessar grossas vigas de madeira”. A mensagem é clara: ainda que esse esforço não afaste esses riscos, podendo gerar “não a floração do estio, mas uma noite polar, glacial e sombria”, não há salvação fora da política.

Para quem invoca essa ideia, não há fronteira entre o legal e o ilegal, o moral e o imoral

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