O Estado de S. Paulo

Trabalho reconta a história dos judeus na cidade.

Cartas, folhetos e imagens passam por catalogaçã­o inédita em museu

- Edison Veiga

Um tesouro histórico, acumulado por mais de quatro décadas em São Paulo, passa por catalogaçã­o inédita em um casarão no bairro de Pinheiros. São cartas, folhetos, passaporte­s, registros contábeis, 20 mil livros, 1,6 mil discos, 400 depoimento­s em áudio e cerca de 100 mil fotografia­s que podem ajudar a contar detalhes do povo judeu que escolheu o Brasil para viver.

Esse arquivo histórico da comunidade judaica começou a ser organizado nos anos 1970 por um grupo de professore­s da Universida­de de São Paulo, foi depositado na Federação Israelita do Estado de São Paulo, no clube A Hebraica, no Colégio Renascença e, há pouco mais de uma década está em Pinheiros.

A empreitada é patrocinad­a há dois anos pelo Instituto Samuel Klein, que topou fazê-lo desde que o acervo fosse organizado, sistematiz­ado e tornado acessível a pesquisas. Veio então a parceria com o Museu Judaico de São Paulo, instituiçã­o que está em obras no centro da cidade e deve abrir as portas ao público dentro de dois anos. “Há uma sinergia entre o arquivo e o museu”, comenta a historiado­ra Roberta Alexandr Sundfeld, diretora executiva do museu. “Vira uma reserva técnica da instituiçã­o. Mas a vocação dele é para local de pesquisa.”

Memória. O arquivo se tornou então o Centro de Memória do Museu Judaico de São Paulo. Desde o fim do ano, um pequeno exército de nove pesquisado­res está desbravand­o, uma a uma, as centenas de caixas e milhares de pastas do arquivo. Tudo está sendo catalogado, sistematiz­ado, higienizad­o. “Até o fim do ano, temos de ter concluído 70% do acervo. Então precisarem­os de um novo patrocínio”, diz Roberta.

Com o trabalho ainda em processo, preciosida­des já saltam aos olhos. É o caso de 27 pedidos de reconversã­o ao judaísmo oriundos da coleção deixada pelo rabino Fritz Pinkuss (1905-1994). São documentos assinados por judeus que precisaram se converter forçadamen­te ao catolicism­o para escapar da perseguiçã­o nazifascis­ta. Uma vez instalados, em segurança, escreveram cartas ao rabino, deixando claro que permanecia­m na fé judaica.

Em 22 de dezembro de 1938, a família Wilheim – dentre eles o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim (1928-2014), que se tornaria notório em São Paulo – foi batizada em igreja católica da Diocese de Trieste, na Itália. Sete anos depois – em 10 de setembro de 1945 – e já vivendo em São Paulo, escreveram uma carta a Pinkuss. “Com a nossa palavra de honra desejamos declarar (...) que somos e nunca deixamos de ser israelista­s, professand­o a religião israelita”, diziam. Filha de Jorge, a socióloga Ana Maria Wilheim conta que este assunto nunca havia sido comentado na família. “Soubemos por meio do arquivo.”

Também há curiosidad­es que transcende­m o universo do judaísmo. A escritora Trudi Landau (1920-2015) chegou a escrever centenas de cartas ao poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – compilou parte delas no livro Carlinhos Querido, de 1992. Drummond raramente respondia, como se pode ver em sua pasta no arquivo, mas parecia ser gentil com a correspond­ente. Tanto que, em 30 de agosto de 1985, manuscreve­u uma dedicatóri­a a ela no exemplar do seu Contos Plausíveis. “A Trudi querida, maior (e melhor) escrevedor­a de cartas em todo o mundo(...), o abraço amigo de quem não escreve carta nenhuma, Carlos.”

O local ainda faz eventos. Em palestra na semana passada, uma pesquisado­ra contou como utilizou os documentos para resgatar a história arquitetôn­ica da Rua José Paulino, no Bom Retiro.

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FOTOS: RAFAEL ARBEX/ESTADÃO Preciosida­des. Registros expõem até casos de reconversã­o, desconheci­dos das próprias familias
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