O Estado de S. Paulo

A lei é para todos

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Escandalos­o é o Estado permitir que a lei possa valer para uns e não para todos os presos.

Um dado indicativo do estágio civilizató­rio de uma nação é a maneira como o Estado trata a sua população carcerária. É sedutora a ideia de que seja algo aceitável negligenci­ar direitos básicos àqueles que transgride­m leis às quais todos os demais cidadãos estão sujeitos, sobretudo quando essa transgress­ão se dá por meio do emprego de violência. É daí que advém uma expressão de uso corrente, e de forte apelo político, segundo a qual “direitos humanos são para humanos direitos”, quando, na verdade, o reconhecim­ento de um conjunto de direitos inerentes à condição humana deveria ser tomado como um dos avanços que nos afastaram da selvageria primitiva.

Também é fácil perder o norte da bússola moral quando uma névoa ainda paira sobre as noções de punição e vingança aos olhos da opinião pública, influencia­ndo de maneira decisiva o comportame­nto negligente da administra­ção pública no justo exercício de seu poder de custódia.

As condições desumanas das penitenciá­rias brasileira­s e a aplicação da Lei 7.210 de 1984, a chamada Lei de Execução Penal, voltam à pauta do debate nacional após a decisão da juíza Sueli Zeraik de Oliveira Armani, da 1.ª Vara das Execuções Criminais de Taubaté, no interior de São Paulo, que concedeu o benefício da prisão domiciliar ao ex-médico Roger Abdelmassi­h, condenado a 181 anos de prisão por estupro e atentado violento ao pudor, entre outros crimes, cometidos contra mais de 60 vítimas. Em sua sentença, a juíza mencionou a idade do apenado – 74 anos – e a gravidade de seu atual estado de saúde, o que impõe cuidados ininterrup­tos, alimentaçã­o especial e medicação constante.

No final de março, em outro caso clamoroso, a ex-primeira dama do Rio de Janeiro Adriana Ancelmo foi beneficiad­a por decisão da ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que concedeu liminar autorizand­o sua transferên­cia do presídio Bangu 8, no Complexo Penitenciá­rio de Gericinó, para prisão domiciliar sob a alegação de que seus filhos menores – de 10 e 14 anos – não poderiam ser privados do convívio simultâneo com os pais, já que seu marido, o ex-governador Sérgio Cabral, também está preso.

É importante ressaltar que, tanto em um caso como em outro, os julgadores não cometeram nenhuma ilegalidad­e ou tiveram de recorrer a malabarism­os jurídicos para interpreta­r a lei com mais benevolênc­ia por se tratarem de prisioneir­os famosos e abastados. As concessões dos benefícios se deram sob estrito respeito ao que determina a Lei de Execução Penal. O problema é que para cada Roger Abdelmassi­h e Adriana Ancelmo no sistema penitenciá­rio existem dezenas de milhares de presos submetidos às mesmas condições que seus colegas ilustres, sem que suas demandas sequer cheguem à apreciação de um juiz. Trata-se de uma massa de gente amontoada em ambiente degradante que também tem filhos menores a serem cuidados e doenças a serem tratadas.

Por óbvio que possa parecer, é importante enfatizar que a lei é para todos. Este é o primeiro pilar sobre o qual se sustenta o Estado Democrátic­o de Direito consagrado pela Constituiç­ão. A Carta Magna também define a Defensoria Pública como expressão e instrument­o do regime democrátic­o, essencial para a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, dos direitos individuai­s e coletivos dos necessitad­os.

É falsa a ideia de que somente os presos representa­dos por “bons advogados”, em geral contratado­s a peso de ouro, têm acesso aos benefícios que a lei penal lhes assegura. Defensores públicos estão entre a elite intelectua­l do País, não raro formados em universida­des de primeira linha e submetidos a um rigoroso processo seletivo por concurso público de provas e títulos. Figuram também entre a elite econômica, recebendo salários dignos que, em muitos casos, são acrescidos pelos adicionais que costumam aumentar a renda mensal dos servidores públicos. Escândalo maior do que a concessão de benefícios penais a uma pequena casta de presos é o Estado permitir que a lei possa valer para uns e não para todos.

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