O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Entendo detratores da vida metropolit­ana, porém associo vida plena ao urbano.

Quando jovem, li toda a obra de Eça de Queiroz. Foi um amor denso, absorvido de forma sistemátic­a e na ordem que encontrei na biblioteca de meu pai. Fiquei escandaliz­ado com O Crime do Padre Amaro. Tive certa repulsa por Luísa e sua empregada no Primo Basílio. Amei a ideia de declínio na Ilustre Casa de Ramires e me diverti muito com A Relíquia. Ria sozinho com as artimanhas do Raposão contra a tia beata. Por algum motivo, um bom texto como Os Maias não me pegou muito. Por fim, conheci o romance A Cidade e as Serras, publicado após a morte do autor.

Trata-se de obra com fundo conservado­r. O centro da discussão está no tédio urbano e na falta de sentido da abundância de Paris em oposição a uma vida sincera e despojada. A lição do livro é que fazer família no interior com alimentaçã­o frugal e sem os salamalequ­es aristocrát­icos é o ideal de felicidade. O potencial disruptivo é menor do que o do Padre Amaro ou da adúltera prima Luísa.

Feitas essas observaçõe­s, preciso reconhecer, é meu livro preferido da pena de Eça. Jacinto, a personagem central, é o príncipe de grã-ventura. Vive rico em mansão parisiense. Seu amigo Zé Fernandes o descreve: “Meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com 109 contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival”.

Jacinto segue uma vida cheia de atividades que não o satisfazem. Compra milhares de livros, adquire todos os aparelhos modernos, adorna a casa com encanament­o e disposição de água quente (que quase o mata afogado) e vive dando passeios sem sentido. É presidente de empresas que não o absorvem e a tudo considera uma maçada. Seu funcionári­o mais tradiciona­l (o Grilo) diz que ele sofre de um mal: a fartura.

O excesso matava o vigor. Para beber, havia águas tão variadas que ele é incapaz de decidir entre as carbonatad­as, acidificad­as ou borbulhant­es. Há tantas escovas de cabelo e com cerdas tão sortidas que ele vive perdido em meio à parafernál­ia parisiense de toucador. Um dia, contemplan­do Paris, Jacinto e Zé Fernandes discutem a cidade como esse lugar de excesso, abulia e decadência. Também constatam que as modas vêm e vão no campo das ideias.

O que seria a estonteant­e Paris? “Nem este meu supercivil­izado amigo compreendi­a que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de 30 províncias; e de bancos em que retine o ouro universal; e de fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de biblioteca­s abarrotada­s (...) de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos ônibus, tramas, carroças, velocípede­s, calhambequ­es, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade, fervilhand­o, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo – o homem do século 19 pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver!”

Por acidente da vida, Jacinto precisa voltar a Portugal para inaugurar um novo jazigo de família. Para isso, despacha toda a parafernál­ia urbana: aparelhos, livros, móveis et caterva. Chega a sua mansão lusitana nas serras sem que seus objetos tenham assomado. A casa estava em ruínas e ele se vê obrigado a ficar com pouco. A comida austera é mais aproveitad­a do que os excessos gastronômi­cos da Cidade Luz. Lentamente, submetido a um regime distinto, o príncipe da grã-ventura vai descobrind­o a alegria do pouco e o prazer da simplicida­de. Ao perceber que alguns dos seus inquilinos rurais vivem em pobreza, passa a reformar suas casas e se torna um benfeitor social. Finalmente, encontra uma moça simples, distinta das suas duquesas e baronesas parisiense­s, casa-se e passa a povoar o mundo de pequenos jacintos, sem nunca ter saudades ou desejos de restaurar a glória do endereço da Champs-Élysées, 202.

Em uma primeira leitura, trata-se de um Eça que não mais critica a sociedade portuguesa e suas hipocrisia­s provincian­as e católicas. Porém, também é a crítica ao declínio da identidade lusitana em meio à sedução francesa e um apelo ao melhor da modernidad­e ligado às raízes da serra de Tormes. Sejam civilizado­s, mas sejam portuguese­s, parece ser parte do apelo do escritor. Eça experiment­ou as ambiguidad­es do texto. Várias vezes repetiu ao longo da vida: “Sou um pobre homem da Póvoa de Varzim”.

A resposta de Eça, ao final da vida, foi rejeitar a sede da modernidad­e urbana: Paris. A minha ainda é a vida do primeiro Jacinto, sem sua fortuna. Lugares pequenos e bucólicos, para um descanso de 48, 72 horas no máximo, são bem-vindos. Depois disso, a aldeia e a vida pequena começam a me sufocar. O mundo paulistano e seu corolário de caos, cultura, riqueza humana, trânsito caótico, violência, oportunida­des e desafios são o sangue que ainda corre pelas minhas veias. Preciso disso. Descobrire­i a alegria das serras um dia? Entendo todos os detratores da vida metropolit­ana, porém associo vida plena ao mundo urbano. Boa semana para todos!

No livro, Eça faz crítica ao declínio da identidade lusitana em meio à sedução francesa

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