O Estado de S. Paulo

Um vice para Temer

- JOSÉ NÊUMANNE

Há semelhança­s e dessemelha­nças relevantes entre os processos de impeachmen­t que depuseram os ex-presidente­s Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016, e a situação do desgoverno de Michel Temer. Este, mesmo parecendo moribundo ou zumbi, não inspira profecias de igual desfecho, ao menos por enquanto. Sem conhecêlas, entendê-las e enfrentá-las, por mais absurda que pareça a hipótese, resta esperar pela improvável demonstraç­ão de espírito público do chefe do Executivo, a renúncia, imitando, não Getúlio Vargas no suicídio, mas Jânio Quadros no abandono voluntário do melhor emprego da República.

Diferença fundamenta­l nos dois exemplos anteriores é que tanto para Collor quanto para Dilma havia um substituto automático, um vice, a possibilid­ade de se agrupar em torno de um nome. Esta talvez seja, na atual conjuntura, a principal diferença do caso de agora em relação a ambos os anteriores. Com Temer já no exercício do poder presidenci­al, o Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a decidir a dúvida específica de o então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), poder, ou não, participar de uma fictícia “linha sucessória” do presidente pelo fato de responder a processos judiciais. A decisão final foi esdrúxula, como muitas outras adotadas recentemen­te pelo órgão supremo do Poder Judiciário: Renan foi autorizado a permanecer no comando da chamada Câmara Alta, que não tem dado demonstraç­ões de muita altitude ultimament­e. Mas foi retirado da chamada, mas inexistent­e, linha de sucessão na chefia do Executivo.

De fato, no presidenci­alismo mitigado, dito semiparlam­entarista ou “de coalizão”, vigente conforme as normas da Constituiç­ão de 1988, só há um sucessor autorizado a assumir automatica­mente a Presidênci­a em estado de vacância: o vice-presidente. Já o era na democracia de 1946, quando Café Filho substituiu Vargas após o suicídio e João Goulart assumiu, depois de longa negociação, o posto abandonado por Jânio.

Com exceção do Partido dos Trabalhado­res (PT), que então era, ou pretendia ser, infenso a pactos de governabil­idade, houve, de fato, substituiç­ão consensual de Collor – deposto por impeachmen­t de indiscutív­el legitimida­de – pelo vice, Itamar Franco. O próprio PT, sob a batuta de Luiz Inácio Lula da Silva, que antes havia rejeitado votar em Tancredo Neves, do PMDB, para substituir o último general da ditadura, João Batista Figueiredo, apoiou a deposição no Congresso. Mas desautoriz­ou sua militante Luiza Erundina de Souza, ex-prefeita de São Paulo, a assumir um ministério, a Secretaria de Administra­ção, no mandato-tampão do ex-governador de Minas, forçando-a a sair do partido.

Não se pode dizer o mesmo do impeachmen­t de Dilma, até hoje contestado como se tivesse resultado de uma intervençã­o fora dos parâmetros constituci­onais para extinção do mandato. Onde lhe é autorizado protestar, como agora na visita de Michel Temer à Rússia e à Noruega e em shows de artistas populares de esquerda, este é xingado de “golpista” e ouve berros de “fora Temer”.

Esse comportame­nto inconsoláv­el da militância esquerdist­a, expelida com Dilma das boquinhas do poder, chama a atenção para outra dessemelha­nça dos casos de Itamar e Temer. O mineiro nascido em mar baiano sempre se manteve longe do carcará sanguinole­nto, sendo, na prática, um desafeto do titular da chapa pela qual se elegeu e mercê da qual chegou ao poder maior depois do impeachmen­t. Após assumir a chefia do Executivo, o exvice comportou-se de forma exemplar, nunca tendo herdado nenhuma suspeita de participaç­ão no esquema de corrupção operado pelo notório PC Farias. Afinal, ele fora, seja na campanha, seja na administra­ção, um corpo completame­nte estranho à famigerada “república de Alagoas”, de tristíssim­a memória, marca registrada do desmantelo Collor.

Com essa autoridade moral, que reforçou ao afastar seu homem de confiança, Henrique Hargreaves, da chefia da Casa Civil, à qual este só voltaria após provar inocência, Itamar montou o time que fez o Plano Real, acabou com a inflação e apostou no futuro, criando a alternativ­a Fernando Henrique. Desta o PSDB se aproveitou para vencer Lula e o PT em duas eleições consecutiv­as e sem precisar de segundo turno.

Ao ler o relato acima, o leitor de posse das faculdades mentais, imparcial, impoluto e munido do mínimo de lógica perceberá que Temer é inteiramen­te diferente. Primeirame­nte, ele antes pertencia à quadrilha que assaltou os cofres republican­os nos 13 anos, 4 meses e 12 dias de desmazelo sob Lula e Dilma, chegando até a funcionar provisoria­mente como coordenado­r político da cabeça da chapa que se reelegeu. Por causa disso lhe coube o desgaste do processo contra a chapa vitoriosa em 2014 no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, aliás, o favoreceu num julgamento que só desmoraliz­ou a já desmoraliz­ada Justiça Eleitoral de antanho.

Portanto, o oxigênio que mantém o governo Temer respirando por aparelhos é não haver vice disponível para evitar a necessidad­e da solução constituci­onal da eleição indireta no Congresso, que é quase tão impopular quanto o ex-vice beneficiad­o. E aterroriza o tal do mercado, que acredita que se ele sair do governo, apesar de todas as evidências de seus passeios pelo Código Penal, será substituíd­o por alguém capaz de jogar as conquistas econômicas no lixo, num ambiente infecto em que todos os Poderes da República padecem de absoluta falta de crédito.

Até agora Temer tem mantido seus parceiros de rapina no Executivo e seus sócios no Legislativ­o asseguram o terço de votos necessário para mantêlo no poder, ao arrepio da lei criminal. Conta ainda com parte do Judiciário que se dispõe a interpreta­r a lei de acordo com as conveniênc­ias dos amigos, comprovand­o que cabeça de juiz pode surpreende­r tanto quanto bumbum de bebê.

Foi menos difícil depor Collor e Dilma, que tinham vices, do que tirar Temer do poder

JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

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