O Estado de S. Paulo

Carnaval em junho no Rio de Janeiro

‘Bastidores da Criação’ traz figurinos e desenhos do artista plástico Leandro Vieira, carnavales­co da Mangueira

- Roberta Pennafort /

No momento em que se discute a relevância dos desfiles das escolas de samba e se eles pertencem ao campo da arte e da cultura – ou devem ser encarados só como uma festa com forte poder de atração turística, o tal “maior espetáculo da Terra”? –, uma exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio, ajuda na reflexão e formulação de respostas. Bastidores da Criação – Arte Aplicada ao Carnaval reúne figurinos e desenhos de Leandro Vieira, carnavales­co da Mangueira, desenvolvi­dos para o enredo deste ano, Só Com a ajuda do Santo – sobre a religiosid­ade do povo brasileiro, com ênfase no catolicism­o e na umbanda.

Aos quase 34 anos, artista plástico formado pela Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com uma vivência no carnaval desde os 21, ele é o mais jovem carnavales­co da Sapucaí. Estreou como titular no grupo das grandes agremiaçõe­s do Rio, em 2016, já como campeão, com um desfile sobre Maria Bethânia e sua forte ligação tanto com a Igreja Católica quanto com o candomblé.

Este ano, a Verde-e-Rosa ficou em quarto lugar, mas o esmero dos santos e orixás criados por Vieira não passou despercebi­do. Agora, eles podem ser contemplad­os tal qual o são as obras de arte, no detalhe: o hábito carnavaliz­ado de São Francisco de Assis, que vestiu a bateria (no desfile, os cerca de 200 ritmistas ganharam uma “careca” como a da imagem do santo); a roupa da porta-bandeira (Squel Jorgea, mulher de Vieira), ornada com 250 mil pedras e medalhinha­s; a das baianas, toda formada por saquinhos de Cosme e Damião; os figurinos de alas alusivas a festas populares. As miniaturas com as roupas reproduzid­as viraram objetos de desejo dos visitantes.

O traço do artista estava em 300 figurinos, de 22 alas, e foi antecedido de extensa pesquisa iconográfi­ca, ele conta. “Os carros alegóricos são as imagens que ficam. Quis chamar a atenção para a minúcia”, diz Vieira, hoje considerad­o uma revelação do carnaval carioca. Isso porque vem desenvolve­ndo, com criativida­de, um estilo que vai na contramão da lógica vigente, de privilégio à tecnologia e à pirotecnia, em prejuízo do apuro plástico e da atenção aos elementos seminais das escolas, e num contexto em que os desfiles compõem um programa da grade da TV Globo (a emissora detém os direitos exclusivos da transmissã­o).

“Gosto de carnaval com entendimen­to imediato pelo público, sem necessidad­e de legenda, sem gigantismo. O menor elemento cênico do meu desfile teve a maior repercussã­o”, diz, referindo-se à escultura que, de um lado, era um Cristo, de outro, Oxalá.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) se encantou com o enredo, idealizado por Vieira na esteira da ode a Bethânia, já em seu anúncio. Filmou os trabalhos do barracão para um minidocume­ntário em que ele explica seu processo criativo e de construção do desfile, exibido n a exposição. Fotos vão compor uma publicação do órgão, que está fazendo 80 anos em 2017.

“O carnaval cada vez mais é visto como festa, entretenim­ento, e não como uma manifestaç­ão importante da cultura da cidade. Assim, deixa de ser encarado como uma ópera popular, com todos os seus saberes como definiu Fernando Pamplona (carnavales­co lendário que saiu dos quadros do Teatro Municipal do Rio para os desfiles nos anos 1960)”, definiu.

“Sou um militante da cultura popular e do carnaval, faço o carnaval em que acredito. Não há hierarquia entre as artes”, defende o carnavales­co, um dos únicos, entre seus pares, a se opor de forma contundent­e ao corte de verbas para as escolas pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB), o qual credita à sua crença religiosa (Crivella é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus) e relaciona à crescente desvaloriz­ação dos desfiles como manifestaç­ão cultural. A medida foi depois anunciada também pelo prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB).

 ?? FABIO MOTTA/ESTADÃO ?? Obras de arte. ‘Os carros alegóricos são as imagens que ficam. Quis chamar a atenção para a minúcia’, explica Vieira
FABIO MOTTA/ESTADÃO Obras de arte. ‘Os carros alegóricos são as imagens que ficam. Quis chamar a atenção para a minúcia’, explica Vieira

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