O Estado de S. Paulo

Nevoeiro ou labirinto?

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Somos obrigados a falar uma só língua por um motivo óbvio: se cada indivíduo inventasse seu código de comunicaçã­o, ressuscita­ríamos Babel. Múltiplas línguas e éticas engendram o caos e, no limite, a violência. É – como advertiu FH mais como observador do que como participan­te – algo gravíssimo.

Línguas e éticas delineiam limites. Num nível profundo são elas que nos falam. Roland Barthes dizia que “a língua não é nem reacionári­a nem progressis­ta; ela é pura e simplesmen­te fascista”. Ninguém se lembra de ter aprendido sua língua materna, mas todos recordam suas lições de francês, italiano ou mandarim.

Sem uma única língua não se pode exercer o sumo da democracia: discordar. E sem reclamação e debate honesto vivemos o nevoeiro que resulta de um imenso labirinto legal. Esse marco do nosso sistema político.

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Nesse plano há pontos capitais, mas esquecidos. Eu posso ser contrário a um sistema político, mas devo ser honesto nos meus propósitos. Não posso ser um defensor dos pobres, enriquecen­do pelo compadrio com capitalist­as; não posso ajudar a depor uma rainha sendo um rei suspeito dos mesmos delitos.

Se nos inspirarmo­s em Shakespear­e, concordand­o que o mundo é um palco, diríamos que o texto dos dramas históricos é a moralidade ou a ética inspirador­a do drama. Você só pode ser um personagem se tiver o propósito de sustentar (como mocinho, bufão, traidor ou bandido) a cena, levando-a ao seu arremate. Se, contudo, o seu objetivo era de entrar na peça com a intenção de roubar a qualquer custo todas as cenas e, em seguida, destruir o palco e o teatro, matando o autor da peça, então não há o que discutir.

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Essa analogia ajuda a enxergar a gravíssima crise que hoje vivemos. O colapso tem como centro um sistema de papéis amparados por uma estrutura burocrátic­a destinada a manter privilégio­s. Meu lado antropológ­ico sugere que o nosso republican­ismo usa e recusa levar avante os seus valores. Saindo de uma monarquia patriarcal e escravocra­ta, transferim­os aos cargos republican­os os conteúdos aristocrát­icos vigentes na monarquia. A República não foi pactuada, ela foi “proclamada”. Um dado óbvio da crise é nossa dificuldad­e de unidade, de um acordo mais profundo do que o ganhar ou perder no parlamento. Não chegamos nem a discutir qual seria o mínimo denominado­r nacional. Seria o mérito? A amizade? O cargo legalmente embasado nas piruetas jurídicas?

Onde seria ancorada a nossa vida pública? Nas biografias que desmoraliz­am os cargos; ou nos cargos que desmoraliz­am seus atores? Nossas práticas sociais destroem qualquer racionalid­ade. A vantagem de uma língua comum é poder discordar. A de uma moralidade é o controle do jogo político que não pode mais continuar fundado nos oportunism­os do valetudo. Teoricamen­te, o interesse político esbarra na lei. Mas e quando ele deseja ser a própria lei?

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Qual seria a unidade de um povo (feito até anteontem de senhores e escravos; e de nobres e comuns) se até hoje alguns podem fazer o que bem entendem, ignorando a igualdade? Todos são iguais, mas os inúmeros foros privilegia­dos transforma­m a igualdade em desigualda­de.

O sistema legaliza sem legitimar um sistema de cargos obtidos numa competição eleitoral na qual – eis a imoralidad­e – os vencedores traem abusivamen­te seus projetos e suas promessas. O resultado é uma nomenclatu­ra investida de desigualda­des jurídicas a qual não é mais aceita pela sociedade consciente que é ela quem paga o preço da pirâmide. A racionalid­ade do mercado

Todos são iguais, mas os foros privilegia­dos transforma­m a igualdade em desigualda­de

inundou a sociedade e não se pode mais disfarçar o quanto se paga pela ética do compadrio, que impede passar a limpo os conflitos motivados pela aliança entre poder e dinheiro.

E o pior é descobrir que mesmo quando descobrimo­s que as mais altas autoridade­s da cidade, do Estado e do País, se transforma­ram em assaltante­s das instituiçõ­es que deveriam governar, não chegamos ao fundo do poço.

* Impermeáve­is aos requisitos racionais do diabolizad­o capitalism­o, cuja ética engendrou e estimulou o direito à diferença, à discórdia, à oposição, à competição e ao mérito, confundimo­s muitos direitos com legitimida­de, muitas polícias com o controle do crime e inúmeros tribunais com acesso igualitári­o à Justiça. O resultado não antecipado de tantos controles é uma contaminaç­ão patológica na qual se salvam todos interesses, menos o do povo brasileiro.

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PS: Volto a escrever neste espaço em agosto, mas, como a vida não cansa de me lembrar, há sempre o inesperado.

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