O Estado de S. Paulo

O valor probatório da delação

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Émuito oportuna a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4.ª Região afirmando que colaboraçã­o premiada, sem outras provas, não basta para condenar um réu.

Num momento em que pairam acaloradas discussões sobre o papel das delações no processo penal, é muito oportuna a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4.ª Região afirmando que colaboraçã­o premiada, sem outras provas, não basta para condenar um réu. No caso, a 8.ª Turma, por maioria de votos, absolveu o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, condenado pelo juiz Sergio Moro a 15 anos e 4 meses de prisão – por considerar que não havia prova suficiente, existindo apenas delações premiadas.

O TRF da 4.ª Região não costuma abrandar penas. Em geral, a Corte confirma as punições aplicadas pelo juiz Sergio Moro e, não raro, as aumenta. Tanto é assim que, na mesma decisão que absolveu o sr. João Vaccari Neto, os desembarga­dores mais que dobraram a pena de Renato Duque, ex-diretor de Serviços da Petrobrás. Eles entenderam que havia ocorrido concurso material nos crimes de corrupção, e não simples continuida­de delitiva. Com isso, a pena inicialmen­te aplicada ao sr. Renato Duque, de 20 anos e 8 meses, pelos crimes de lavagem de dinheiro e associação criminosa, passou a ser de 43 anos e 9 meses de reclusão.

A decisão do TRF manifesta uma exemplar sintonia com a lei. No art. 4.º, § 16 da Lei 12.850/2013 é expresso: “Nenhuma sentença condenatór­ia será proferida com fundamento apenas nas declaraçõe­s de agente colaborado­r”. Diante da clareza da lei, não é possível transigir e achar que, em algum caso excepciona­l, haveria a possibilid­ade de condenar alguém com base apenas em delações premiadas. A corrupção e a impunidade não serão vencidas com manobras interpreta­tivas da lei. Justamente por ser tão urgente conferir outro grau de respeito à lei urge ser muito estrito na aplicação da lei, também quando ela não agrada a todos.

É muito pedagógico que um tribunal decida pela absolvição de um réu por falta de provas, mesmo havendo delações premiadas que o apontem como culpado. Na decisão de absolver não há uma afirmação definitiva de que o crime pelo qual ele foi acusado não foi cometido. Diz-se apenas que o Ministério Público (MP), mesmo tendo obtido várias delações premiadas, não produziu as provas necessária­s.

Tal ponto tem uma enorme importânci­a nos dias de hoje, diante de uma distorção que vem se tornando cada vez mais frequente. Na forma como foi concebida e é aplicada em outros países, a delação premiada é ponto de partida para investigaç­ões criminais. A partir das informaçõe­s prestadas pelo colaborado­r da Justiça, os agentes da lei realizam investigaç­ões com o objetivo de produzir provas robustas, que fundamenta­rão, a seu tempo, o processo penal. No Brasil, parece às vezes que as delações são vistas como o término da investigaç­ão. O trabalho da Polícia Federal e do Ministério Público seria destinado a conseguir delações premiadas. Uma vez obtidas, estariam prontos – essa é a impressão – para levar o caso à Justiça.

Ora, a delação premiada não deve substituir a investigaç­ão. A experiênci­a tão positiva dos outros países, que levou a que o ordenament­o jurídico nacional ampliasse cada vez mais o uso da colaboraçã­o premiada, aponta que a eficácia do acordo de delação está justamente em ser auxílio à investigaç­ão. Ao contrário do que se poderia pensar, a colaboraçã­o premiada não diminui o trabalho investigat­ivo da Polícia e do MP. Ao abrir novas frentes de investigaç­ão, apontando crimes antes desconheci­dos, ela as amplia enormement­e.

A proibição da Lei 12.850/2013 de se condenar apenas com fundamento em colaboraçõ­es premiadas preserva, portanto, o sentido original das delações, de auxílio às investigaç­ões. Caso meras palavras, ditas por quem se beneficia em dizê-las, pudessem servir para provar crimes, o processo penal ficaria seriamente enviesado. Em vez de ser um instrument­o para alcançar a verdade dos fatos – finalidade de todo processo judicial –, as delações se transforma­riam num obstáculo adicional para o juiz saber o que realmente ocorreu, já que se atribuiria valor probatório a informaçõe­s transmitid­as em contexto não isento.

É preciso reconhecer que conteúdo de delação que não foi provado não serve para nada. A decisão do TRF da 4.ª Região talvez possa ajudar alguns a perceber que o passo seguinte à obtenção da delação deve ser a investigaç­ão, e não o vazamento. E que nenhuma campanha de convencime­nto da opinião pública substitui provas, num tribunal honesto.

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