O Estado de S. Paulo

Justiça em primeiro lugar

- CLAUDIO LAMACHIA

Acrise que envolve o presidente da República –e é objeto de um pedido de impeachmen­t da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – suscitou uma discussão lateral sobre a conveniênc­ia de questionar o chefe do governo em meio a um quadro de recessão econômica. É uma tese sem lastro moral, de fundo meramente utilitário, que, levado ao extremo, revoga o artigo 5.º da Constituiç­ão, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”. Usouse de idêntica argumentaç­ão quando do processo contra a presidente Dilma Rousseff. Nada de novo, pois.

A crise que já há alguns anos sacode o País, antes de ser política, econômica e social –e é isso tudo –, é bem mais grave que isso: é moral. A profusão de agentes públicos envolvidos em ilícitos, como jamais se viu em qualquer tempo, distanciou a sociedade daqueles cuja missão institucio­nal é representá­la. Quando isso acontece, temse a desordem, o descrédito das instituiçõ­es leva à anomia e, por essa via, à desobediên­cia civil. Ao caos. O Brasil só escapará a essa tragédia, que as pessoas sensatas têm o dever de evitar, se não descuidar do único antídoto capaz de debelá-la: a justiça – sem messianism­os de espécie alguma, respeitand­o o devido processo legal, com ampla defesa e direito ao contraditó­rio. Sem isso não haverá justiça, mas justiçamen­to.

Por essa razão, a OAB ingressou em março com uma Ação de Descumprim­ento de Preceito Fundamenta­l para que o Supremo Tribunal Federal, nos termos da Constituiç­ão, ofereça interpreta­ção do artigo 260 do Código de Processo Penal, que trata de conduções coercitiva­s. E o fez não para dificultar as investigaç­ões, mas para impedir os excessos que a deslegitim­em.

A condução coercitiva cerceia a liberdade de ir e vir do indivíduo, constrange­ndo-o a um depoimento não previament­e marcado, o que torna inviáveis os mais mínimos arcabouços de defesa, por impedi-lo de obter a orientação técnica. Trata-se, pois, de garantir a ampla defesa, que não permite relativiza­r nenhum direito ou garantia fundamenta­l, sob pena de se abrir uma janela para o abuso e a arbitrarie­dade do Estado policial.

O combate ao crime ao arrepio da lei constitui outro crime e não pode ser tolerado sob nenhum pretexto. É o outro lado da mesma moeda: de um lado, a impunidade em nome da estabilida­de econômica e, do outro, a supressão do rito judicial em nome da eficácia punitiva. Nas duas hipóteses se sabota a justiça.

A tentativa de dar cunho ideológico, partidário ou corporativ­o ao processo de saneamento moral do País não faz sentido, venha de onde vier: Ministério Público, Poder Judiciário, Legislativ­o ou Executivo. Moral não tem lado nem ideologia, tem princípios. Justiça não é de direita nem de esquerda, simplesmen­te é, nos termos da lei.

Está – ou não será justiça – acima do conflito das partes, do duelo dos partidos e das ideias, exatamente por ter a missão de garanti-los, mediante regras claras e universais. Ou as regras valem para todos – ou não valem para ninguém. Como num jogo de futebol, o juiz não joga: garante o jogo. Se houver parcialida­de, descumprim­ento das regras, o jogo é ilegítimo.

Historicam­ente, a classe dirigente brasileira postulou privilégio­s inaceitáve­is. Deu cabimento à sátira com que Millôr Fernandes se referia ao artigo 5.º da Constituiç­ão: “Todos são iguais perante a lei... mas alguns são mais iguais”.

Essa distorção, que formou uma cultura nefasta – e agora chega ao paroxismo –, está no cerne da atual crise. A população, padecendo os rigores de uma recessão sem precedente­s, com 14 milhões de desemprega­dos, projeta suas expectativ­as na justiça. Não quer pagar uma conta que não é sua – nem tem a segurança de que, ainda que faça os sacrifício­s que lhe pedem, a dívida será mesmo honrada. Os precedente­s dão-lhe razão.

Só a justiça – a válvula de escape que resta – restabelec­e a ordem. Não importa, nesses termos, quais sejam os suspeitos, sobretudo se entre eles está o presidente da República; quanto mais importante­s os personagen­s, mais urgentes e indispensá­veis se tornam os esclarecim­entos, sob pena, aí sim, da ingovernab­ilidade.

Supor que é possível reconstrui­r a economia sem sanear a política – e sanear esta sem enquadrar os que nela delinquira­m – é não entender nada de política e economia. Quem não perceber que um novo País está sendo forjado, em bases morais mais sadias, já está fora da realidade – e perdeu a sintonia com a História.

O advento da era da informação, com a internet e suas redes sociais, produziu uma sociedade em sinergia, conectada mesmo. E essa é uma viagem sem volta. O povo não está apenas nas ruas, está em rede. Quer transparên­cia e não é mais agente passivo da História. É protagonis­ta.

A OAB, em seus 87 anos de existência, jamais se omitiu em relação à vida pública brasileira. É a única entidade não estatal que tem o dever estatutári­o – e seu estatuto é lei federal – de zelar pelo Estado Democrátic­o de Direito e pela boa aplicação das leis. Por isso se tornou portavoz da sociedade civil e desde sua fundação tem tido grande protagonis­mo na cena política, sem, no entanto, tomar partido.

Advém daí sua força moral. Foi interlocut­ora da sociedade, por meio de seu então presidente, Raymundo Faoro, quando, na década de 1980, o regime militar quis negociar os termos da redemocrat­ização. Desse processo resultaram o fim da censura, o restabelec­imento do habeas corpus, as eleições diretas e, em suma, a assim chamada Nova República.

Já nessa etapa, além de se manter intransige­nte no combate à corrupção, esteve à frente dos processos de impeachmen­t que afastaram Fernando Collor e Dilma Rousseff – agora faz o mesmo com Michel Temer – e foi protagonis­ta novamente na defesa do habeas corpus quando da apresentaç­ão das dez medidas de combate à corrupção. Pela diversidad­e dos partidos e dos perfis ideológico­s desses personagen­s, vêse que não age facciosame­nte. O partido da OAB é o Brasil e sua ideologia, a Constituiç­ão.

O partido da Ordem dos Advogados é o Brasil e sua ideologia, a Constituiç­ão

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