O Estado de S. Paulo

Pedra no sapato chavista

Revolta da procurador­a-geral da Venezuela, Luisa Ortega Díaz, ameaça governo do presidente Nicolás Maduro, mas sua cruzada contra o regime parece ser solitária

- / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER © 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

Traidora. Louca. Fascista. São ofensas desse tipo que nos últimos tempos os líderes venezuelan­os vêm dirigindo à procurador­a-geral do país, Luisa Ortega Díaz. Pouco importa que ela considere Hugo Chávez “a pessoa mais humanista que já houve no planeta”. Seus antigos companheir­os agora a veem como uma perigosa viracasaca.

Ex-professora de direito penal, Ortega de fato ameaça cada vez mais o governo repressor da Venezuela. Nicolás Maduro bem que gostaria de tirar Ortega da chefia do Ministério Público, mas, segundo a Constituiç­ão venezuelan­a, só o Parlamento pode fazer isso. Analistas dizem que esse é justamente um dos motivos pelos quais o presidente quer um novo texto constituci­onal. A Assembleia Constituin­te, composta por 540 delegados escolhidos de forma a assegurar sua lealdade ao governo, terá poderes quase ilimitados, podendo dissolver o Parlamento e destituir qualquer autoridade de seu cargo.

Dois auxiliares de Maduro, o vicepresid­ente Tareck El Aissami e o expresiden­te da Assembleia Nacional Diosdado Cabello, já disseram que Ortega deixará de causar problemas ao regime tão logo a Constituin­te se reúna, no início de agosto. “Ela tem apenas 53 dias no cargo, nem um dia a mais”, disse Cabello em 7 de junho.

Não que Ortega seja uma liberal. A procurador­a-geral manifestou-se favoravelm­ente à prisão de líderes opositores, como Leopoldo López – um dos mais proeminent­es entre os 359 prisioneir­os políticos que há atualmente na Venezuela. E é pouco provável que ficasse feliz com os resultados de uma eleição livre, que, ao que tudo indica, colocaria a oposição antichavis­ta no governo.

Apesar disso, é evidente sua repulsa ao fato de o governo estar lançando mão de recursos claramente espúrios para se manter no poder. Em três meses de manifestaç­ões, houve pelo menos 81 mortes, muitas delas causadas pela Guarda Nacional Bolivarian­a ou por “coletivos” armados que apoiam o regime. A Procurador­ia-Geral investiga acusações de violência cometidas pelas forças de segurança.

É possível que Ortega seja menos cega que Maduro à pobreza crescente em que vivem os venezuelan­os. A economia do país apresentou retração de 25% nos últimos três anos; o valor do bolívar despencou; as taxas de desnutriçã­o e mortalidad­e materna dispararam. Os únicos venezuelan­os que prosperam são os que têm laços estreitos com o regime.

Sem ter, por ora, como tirar Ortega do cargo, o regime chavista transferiu boa parte de suas atribuiçõe­s ao Exército. O ministro do Interior, Néstor Reverol, que foi indiciado por tráfico de drogas nos EUA, postou mensagem no Twitter dizendo que “os tribunais militares se encarregar­ão de dar continuida­de a todas as investigaç­ões que sejam necessária­s relativas a esses terrorista­s contratado­s pela direita”. A procurador­a-geral criticou o fato de civis estarem sendo processado­s por tribunais militares.

Sua cruzada parece solitária. “Muitos chavistas compartilh­am da visão de Ortega sobre o que está acontecend­o, mas não têm autonomia institucio­nal ou coragem para reagir”, diz David Smilde, do centro de estudos e pesquisas Washington Office on Latin America.

Ortega dispõe de outros meios para fustigar o regime. Segundo a empresa de análise de tendências políticas Stratfor, um deles seria a invocação do Artigo 350 da Constituiç­ão, que, na interpreta­ção de alguns, justifica a insubordin­ação das Forças Armadas com a finalidade de salvaguard­ar os valores republican­os do país. Outra possibilid­ade seria a abertura de inquéritos preliminar­es para investigar a conduta de Maduro. A procurador­a-geral também poderia ameaçar acatar pedidos de extradição de autoridade­s venezuelan­as acusadas de crimes por outros países, como Reverol.

O amotinamen­to da chavista Ortega é um sinal claro de que o regime perdeu sua autoridade moral mesmo entre alguns de seus mais fervorosos correligio­nários. Com o avanço da pobreza e da insatisfaç­ão popular, o desencanto com o regime deve se disseminar. A partir daí, seu poder de coação talvez comece a enfraquece­r.

O amotinamen­to de Ortega é um sinal claro de que o regime perdeu sua autoridade moral mesmo entre os chavistas

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